Dona Madalena Santiago da Silva,
preciso dizer que o mundo seria muito melhor se eu tivesse a oportunidade de escrever para a senhora falando sobre tantas outras coisas. E não por causa dos 54 anos em que a senhora foi escravizada em Lauro de Freitas. Não pelas gerações de uma família branca que roubou sua humanidade, sua dignidade, seu dinheiro, seu tempo. Que diziam que a senhora era da família, que a chamavam de “mãe preta”.
Sobre os culpados, quais são seus nomes? Continuarão virtualmente desconhecidos? Quem é a “filha” que pagava a faculdade de medicina com seu dinheiro Madalena? Quem é a patroa, a sinhá dos tempos modernos? Quem é o autor da carta que se parece com uma personagem de novela de época criada para nos fazer acreditar que os sinhozinhos nos tratavam bem?
Ao ver sua imagem na televisão e pensar em como sua estória foi contada ao longo do dia em uma poderosa emissora do país, uma série de sentimentos contraditórios tomaram meu corpo. Embora eu me emocione com facilidade, poucas vezes o racismo me arranca lágrimas. Mas ao ver a senhora chorar, dizendo ter medo de tocar uma pessoa branca, parei de pensar e comecei a sentir. Não pude me conter.
É verdade Dona Madalena, para algumas poucas pessoas negras, algumas pequenas coisas estão mudando.
Com o tempo, outros espaços se abriram para que nós pudéssemos ao menos olhar pela fresta da porta. Vivemos para ver que agora as empresas entendem ou pelo menos fingem entender que nós escovamos os dentes, usamos colchões, usamos sabonete, fazemos faculdade. Mulheres como Flávia Oliveira, Aline Midlej, Malu Coutinho entre tantas outras passaram a fazer parte de nosso cotidiano, de algumas de nós pelo menos.
Ainda que timidamente e com muito custo, temos tempo de televisão como esse em que sua estória foi contada. Uma estória que tem origem no trabalho doméstico escravizado, sem remuneração, violento para nossas mães e suas filhas. Essa mentira sobre sermos “parte da família” para roubar direitos trabalhistas como foram os seus, os de minha avó, minha mãe e de tantas outras.
Somos nós, as pessoas ameaçadas, assassinadas, presas, violentadas. Somos nós que deveríamos tremer dos pés à cabeça quando a gente vê um branco.
Viviane Gomes
Porém, ainda existem estórias como a sua. Que acontece ao mesmo tempo em que a primeira astronauta negra a ser escalada para uma missão de longa duração na estação espacial internacional está prestes a chegar aonde nenhuma de nós chegou antes. Não estamos tão distantes como gostariam de nos fazer pensar, mas um mundo de oportunidades e interesses separa a senhora de Jessica Watkins, geóloga e agora astronauta americana de 33 anos, também cotada para ser a primeira mulher negra a pisar na lua.
Entendo que houve um enorme esforço de pessoas negras e não-negras a quem eu gostaria de agradecer por sua estória ter sido contada. Ainda assim estamos longe da possibilidade de denunciar o racismo sem, ao mesmo tempo, contemplar mesmo que sem querer o prazer criminoso que o racismo provoca.
Eles se alimentam de nossa dor. É o que fazem com as nossas crianças, sob o pretexto de que não há outra forma de conquistar a solidariedade no Brasil.
Nosso sofrimento vende.
É por isso Dona Madalena que estão reproduzindo sem parar sua imagem. Fiquei muito triste por terem colocado no ar o momento em que a Senhora chora porque não querer tocar a mão de uma mulher branca, a repórter Adriana Oliveira. Não haveria porque perguntar do que “você tem medo”. Foi deslocado e violento.
Nós não temos o dever de nos reconciliar com quem nos agride, é trabalho de branco se reconciliar e compreeender sua própria violência. São herdeiras da barbárie, quer queiram, quer não. Carregam a violência no corpo, por vontade ou por omissão. E tocar um corpo negro sem permissão ou em um momento de extrema fragilidade é um desses privilégios.
Mas não é nada, vão dizer. Ora, esse é o profundo da questão, sabemos Dona Madalena. Já não basta nos matar em vida se apropriando de nossos conhecimentos, nossas roupas, nossas estórias, nossa vida inteira? Já não basta nos usar como se a gente fosse um eletrodoméstico por mais de meio século, já não basta roubar nosso sustento?
“Ninguém larga a mão de ninguém”, é o que se espalha por ai.
Mas as mãos das mulheres pretas ninguém quer segurar…