Acho bastante injusto quando alguém começa uma prosa dizendo que se você não
esteve em Marte nos últimos meses assumindo que todo mundo está ou deveria acompanhar determinado assunto. É por isso que vou te contar uma estória comprida sobre uma terra não tão distante assim.
Há muitas luas atrás, a humanidade finalmente realizou uma de suas maiores ambições: o
sonho de deixar a Terra e morar em outro planeta. Muitos acreditaram que uma nova
sociedade, mais justa, seria criada por aquelas pessoas tão corajosas, inventivas e curiosas o
suficiente para encarar tal aventura.
A tecnologia da época era tão avançada e prodigiosa que os homens foram capazes de criar
um planetoide artificial chamado Internet. As primeiras missões até lá foram promovidas
especialmente para atender necessidades militares. Porém logo chegaram os primeiros
dissidentes, cuja estória ainda é cercada de mistérios.
É sabido apenas que, eram estudantes e cientistas com conhecimento e algum acesso
para construir as primeiras residências ali. Algumas décadas depois chegariam os primeiros
mercadores, que tornariam a proeza de habitar em Internet um pouco menos complicada.
O que foi visto como uma poderosa reafirmação de uma antiga promessa de liberdade que todo mundo conhecia mas ninguém havia escrito de fato. E assim, a população daquele novo
planetóide aumentava. Ao menos não haviam começado a comprar e vender as terras antes de
terem chegado lá, como fizeram com a lua antes.
Talvez perguntem porque as pessoas até hoje insistem em dizer que foram necessários algumas
outras décadas, talvez duas, para que os homens finalmente descobrissem qual era a
verdadeira vocação daquela terra se desde seus primeiros dias havia sido criada para a guerra
e depois usada para fazer negócios…
Ou ainda porque muitas de nós acreditassem que ali seria possível viver em grande liberdade
ou ao menos lutar por ela, uma realidade que jamais tinha sido concretizada para quem havia
simplesmente caído na Terra.
Talvez porque em ambos os casos, ninguém estivesse disposto a perder uma boa
oportunidade, de vender ou de lutar por sua liberdade. Mesmo que a maioria das pessoas
comuns não soubessem como chegar até lá. E quando fazíamos isso, poucas de nós tinham as
ferramentas para construir suas próprias casas. Quando os grandes comerciantes chegaram
prometendo que não precisávamos de nada disso, nos acreditamos. E começamos a nos reunir
em torno desses pequenos oásis, onde era permitido estabelecer residência.
O planeta estava agora estabelecido. Havia crescido de tamanho como acontece até agora.
Quando criaram a primeira estrada ao redor dele, tudo ficou mais fácil. A Netscape ou Escapada
para Internet foi a primeira rota acessível a quem pudesse chegar até lá. E em torno dela
surgiram muitas possibilidades.
É preciso dizer que Internet não obedece as mesmas regras da química e da física tal como
conhecemos na Terra. Mas uma coisa é certa, o tamanho de cada propriedade e seu destino
sempre foi determinado pela quantidade de dinheiro que cada pessoa podia pagar.
Essa foi a lógica que estruturou a paisagem do planeta.
Alguns construíram casas mais modestas. Outros, condomínios. Logo surgiriam os primeiros
bairros. Mais tarde, países. Dizem que um dos primeiros, a Blogosfera, agora agoniza. Muito se
perguntam se os habitantes dali sobreviveram pois a maioria dos habitantes de Internet não
sabem que o país existe ou acham complicado chegar até lá.
O modo pelo qual esses países se estruturam foi mudando ao longo da história dessa
civilização. Em Blogosfera nós vivíamos com mais liberdade, algo parecido com a ideia de se
alugar uma casa. Isso numa época menos distante do começo dos tempos, quando os
governos da Terra não estavam preocupados com o que acontecia no planeta ao lado. Reinava
a ideia de que o que acontecia em cada um deles não poderia ter qualquer repercussão com o
que acontecia no outro.
Com tempo isso se provou uma grande inverdade.
As estradas haviam se multiplicado, outras abandonadas. O mesmo acontecia com os países.
Alguns nasceram e morreram, tendo como única explicação para esse fenômeno a lógica do
dinheiro. Mais especificamente a sua capacidade de criar uma economia vibrante e capaz de
atrair investimentos como o Facebook, um dos destinos mais atrativos do planeta.
Sua economia é muito simples: oferecem residências de graça para atrair moradores, desde que
os mesmos fiquem o maior tempo possível por lá. A tal ponto que chegam a imaginar que todo o planeta Internet se resume a um país como o Instagram ou Telegram. Ao mesmo tempo, vendem o tempo de vida de seus habitantes para quem pode ou precisa fazer anúncios, como muitos governos do planeta ao lado, a Terra.
A ética desses países começou a ser questionada tanto em planeta quanto outro. Por que não
mais importava o que era dito, desde que a informação continuasse fluindo e se tornando
dinheiro. O que criou um novo tipo de riqueza, que talvez não seja tão novo assim, a
Informação. E tão logo se tornou menos complicado viajar de um planeta o outro, tão logo
Terra e Internet se confundiram assim como suas economias.
O que aconteceu naquele país chamado Twitter é um exemplo disso. Aquele país que de
alguma forma ainda se relacionava com aquela antiga profecia jamais escrita e concretizada de
liberdade, logo se tornou objeto de disputa entre duas visões de mundo completamente
diferentes. A primeira delas fundamentada pela ideia da liberdade de expressão. A outra na de
ofensa.
Tudo mudou quando o país foi comprado por um dos maiores dignatários terrestres, muito
mais poderoso que 100 mil mercadores. Muitos talvez se perguntem como é que alguém pode
comprar um país com tanta gente morando lá. A verdade é que isso ainda não é possível na
Terra. Mas em Internet sim, não nos esqueçamos dos seus primeiros dias…
E assim aconteceu. Logo a Constituição de Twitter foi abandonada, seus serviços essenciais de
água e energia se tornaram instáveis. Já não era possível morar naquele país sem pagar nada,
ou melhor, pagando apenas com seu tempo de vida. Era preciso muito mais que ver anúncios,
era preciso pagar para provar a própria identidade.
Essas mudanças não foram feitas em acordo com os habitantes ou antigos donos do país. Muito
menos em diálogo com os governantes da Terra, com quem compartilhavam cidadãos. Afinal
nesses países a cidadania nunca existiu. Éramos usuários. Ou usuárias, com alguma sorte.
O que acabou colaborando grande estabilidade financeira nos dois planetas. É que, não havia
se vendido simplesmente um país, mas também quem habitava nele. O que explica o grande
interesse entender quantas pessoas ali eram de carne osso ou um aglomerado de bits, pois os
autômatos escravizados para servir produzindo informação tem se tornado cada vez mais
convincentes, inteligentes o bastante para não serem identificados.
Mas afinal porque alguém compraria um país na Internet?
Por que naquele planeta o petróleo era de outra natureza. Era a própria informação. E para
além de qualquer lucro envolvido, controlar como e para quem ela seria destinada também
teria repercussão na Terra inteira. Isto porque muitas pessoas passaram a transitar entre os dois
planetas para trabalhar. Quando Twitter foi vendido, muitas delas perderam seus empregos e
sua renda. O que tem acontecido de forma alarmante. Atingindo famílias da Terra inteira,
inclusive no Brasil.
Além disso, em acordo com os interesses de alguns governos da Terra, a comunicação de
Twitter com outros territórios mais democráticos foi interrompida, como aconteceu com um país chamado Mastodon que tem atraído as vozes dissidentes expulsas do país vizinho e
concorrente. Sem qualquer explicação para isso.
Tudo isso acontece no momento bastante complexo para a própria Terra, onde países
democráticos tem se tornado uma espécie em extinção. Fazendo com que muitos muitas
pessoas tentem entender a relação entre os países da Terra e os países de Internet e como suas
sociedades podem interagir e influenciar umas à outras. Tanto para fortalecer ou atacar a
democracia. Seremos capazes de defender nossas cidadanias em países como Twitter e
consequentemente na própria Terra? Ou vamos nos esquecer daquela antiga profecia?
Um cenário de conflito que aumenta a tensão interplanetária, em disputa pela Informação.
Tanto na Terra quanto em Internet, quem está no poder direciona seus esforços científicos para
capturar nossas existências concretas e informacionais. Um conjunto de dados capaz de recriar
pessoas e suas próprias vidas para qualquer propósito, em escala cada vez mais assustadora. O
que nos faz pensar que o preço pago por Twitter não foi tão alto assim.