Crítica: ‘Mulheres, cultura e política’ traz discursos e artigos de Angela Davis

A chegada deste livro, segundo da autora traduzido para o Português em um ano (o primeiro foi “Mulheres, raça e classe”), nas mãos do público brasileiro não é obra do acaso.
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Originalmente publicado por Giovana Xavier no Globo em 13/01/2018.

RIO — Quando “Mulheres, cultura e política” foi lançado nos EUA, em 1984, o Brasil vivia os instantes finais da ditadura civil-militar. Enquanto a população pobre norte-americana (na sua maioria negra), aprendia a se reinventar frente aos retrocessos característi-cos dos dois mandatos do presidente Ronald Reagan (redução das políticas de bem-estar social, de programas sociais ligados à alimentação, à saúde e aos direitos reprodutivos, crescimento alarmante da militarização, entre outros), em terras brasileiras, a atmosfera era de esperança e mobilização em prol do restabelecimento da democracia, após duas décadas de governos militares.

A chegada deste livro, segundo da autora traduzido para o Português em um ano (o primeiro foi “Mulheres, raça e classe”), nas mãos do público brasileiro não é obra do acaso. Embora faça falta um prefácio da filósofa à presente edição, no qual fosse possível ouvir suas impressões, na primeira pessoa, sobre as relações entre Brasil e EUA, a publicação representa uma grande possibilidade de conectar as duas histórias. Isso tendo como referência as experiências e o conhecimento científico produzido por uma intelectual negra, que intersecta com propriedade os lugares de acadêmica, ativista do socialismo e dos feminismos negros.

Para usar um conceito recorrente no seu pensamento, a tradução possui “interconexão” com transformações sociais vivenciadas no Brasil nas duas últimas décadas. A regulamentação do trabalho doméstico, a emergência de intelectuais públicas como a fi-lósofa Djamila Ribeiro, o aumento do número de estudantes negros nas universidades públicas através das políticas de ações afirmativas, o fortalecimento do ativismo virtual, representado por mídias como o Blogueiras Negras, coordenado por Charô Nunes e La-rissa Santiago (com uma média de publicação de vinte textos semanais de autoras negras do Brasil e da diáspora), do Canal Youtube Afros e Afins, da digital influence Nataly Neri e do Movimento Guerreiras de Bangu, composto por companheiras e familiares de homens em situação prisional, são espelhos para observar o que Angela Davis, professora emérita de Estudos Feministas da Universidade da Califórnia, define como “potência po-lítica” das mulheres.

Essa efervescência e o reconhecimento de que “as mulheres de todo o mundo constituem uma potência política capaz de representar uma incontestável ameaça às forças globais do atraso e da opressão” são aspectos que tornam Mulheres, Cultura e Política uma obra indispensável às pessoas interessadas em conhecer e discutir propostas de de-mocracia radical, identificadas com os feminismos negros, interseccionais e seus legados.

Compilação de discursos e artigos publicados pela filósofa entre os anos 1970 e 1980, período em que a ativista dedicou seu trabalho a “falar em público” dentro e fora dos EUA, a obra encontra-se dividida em três partes, totalizando 17 capítulos nos quais as articulações entre gênero, raça e classe são pensadas dentro de um projeto huma-nitário socialista: “Sobre as mulheres e a busca por igualdade e paz”, “Sobre questões internacionais”, “Sobre educação e cultura”.

Na primeira parte, o protagonismo das mulheres negras na autoria do conceito de “empoderamento” é dissecada. Lançando mão da metáfora da pirâmide, na qual tais sujeitas ocupam a base, Angela Davis ressalta que quando grupos radicalmente oprimidos progridem, todo o topo vê-se forçado ao movimento, garantindo “mudanças progressistas para todas as mulheres”. Através da ideia de radical como “compreensão das coisas desde a raiz”, a filósofa discorre ainda sobre a importância que a resistência organizada ocupa nas lutas antirracismo e contra todas as formas de opressão, que segundo ela “interconec-tam-se”. Tendo os direitos humanos e a precariedade desses direitos para a população negra como um dos fios condutores do livro, pautas como descriminalização do aborto e combate à esterilização forçada são revistas, evidenciando o papel do machismo e do racismo contra mulheres negras na gestão de políticas públicas.

Na perspectiva norte-americana de Women of Color (mulheres de cor), a autora dedica a segunda parte do livro a esmiuçar os bastidores do “intenso ativismo internacional em nome dos direitos das mulheres”, referenciado na Conferência Oficial de Conclusão da Década da Mulher da ONU, realizada em 1985, no Quênia (Nairobi). Em um rito de observação participante, ela registra sua percepção acerca dos impactos de problemas tais quais o desemprego, a desigualdade e a militarização da economia, todos estes gerados no interior da estrutura capitalista. Angela Davis enfatiza ainda a importância de educar as crianças para a liberdade, além de narrar a influência que a presença e o pensamento de ativistas como Winnie Mandela, de militantes terceiro mundistas como Fathia al Assal e da socialista russa Clara Zektin desempenham para a compreensão do femi-nismo como um “movimento global pela emancipação das mulheres”. O ponto alto desta seção do livro reside no capítulo “As Mulheres do Egito: uma perspectiva pessoal”, texto

no qual a filósofa, a partir dos debates sobre igualdade sexual reflete sobre os significados de sua condição norte-americana. Tendo em vista os densos questionamentos feitos por feministas egípcias acerca do sentimento de superioridade das feministas do Norte do Globo, a ativista revê seus posicionamentos, assumindo que existe “um grande perigo em representar a libertação sexual enquanto libertação feminina”.

Mantendo o vislumbre de um futuro socialista, a última parte é dedicada a “imaginar o futuro” no contexto de crise econômica do governo Reagan. Isso é feito através de discursos para jovens universitários em cerimônias de formatura na Berkely High School, na Universidade Estadual de São Francisco, entre outros nos quais ela frisa que, “independente do grau de instrução é menos provável que mulheres e homens afro-ame-ricanos sejam contratados do que pessoas brancas”. Nesse sentido, a acadêmica convoca “jovens amigas e amigos” a levantarem-se e lutarem pela “paz, por empregos, pela liber-dade e pela igualdade”. Nesse projeto de “colher o fruto e espalhar as sementes”, há es-paço reservado para discutir o papel da arte e da educação na busca da paz global. Por meio de sua escrita, conhecemos melhor o impacto político dos “estudos étnicos”, como conceito focado “nas reivindicações culturais das populações racialmente oprimidas nos Estados Unidos” e oriundo das lutas por justiça e igualdade no campo educacional. Também nos deparamos com a complexidade de um dilema que, pode-se dizer, está presente em todas as comunidades negras diaspóricas: como transmitir para “as massas de nosso povo” o acesso à arte e à cultura que produzimos?

Resta dizer que no Brasil de 54% de população negra, o livro de Angela Davis deve ser reconhecido como um clássico que reitera o fato de que a “política não se situa no lado oposto da vida”. Essa afirmação nos inspira  — individual e coletivamente  —  a mover-se para a construção de projetos de prevenção, autocuidado e empoderamento que tornem possível definir paz “como justiça racial, sexual e econômica”.

* Profa. Faculdade de Educação UFRJ, coordenadora do Grupo Intelectuais Negras

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