A cidade como protocolo

Arquitetos e urbanistas não vão mais lidar com pessoas, mas sim com usuários. A relação é completamente outra. Deixaremos de ser entendidos como humanidade nos tornando um pacote de dados.
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A ideia de cidade é grande demais para ser entendida como algo simples. Chamamos quase tudo de cidade para contrapor à ideia de ruralidade. Aqui, estou falando de grandes centros urbanos, as megacidades… Que são complexas demais para serem abstraídas em uma prancheta, em um desenho que relaciona seus diversos aspectos em cima de uma folha.

Mas uma coisa é certa, o fazer das cidades não é algo isolado do contexto em que se insere. É como se a nossa humanidade importasse cada vez menos nesse campo que parece buscar argumentos para se legitimar, para esconder sua verdadeira natureza de máquina capitalista. Já traçaram seus planos estratégicos, agora se voltam para a tecnologia da informação.

Nesse contexto, a cidade se afastará cada vez mais da expressão de direitos humanos como pensou Jane Jacobs e será cada vez mais uma interface de contato usada para gerenciar todas as funções vitais desse território, formando um sistema nervoso central automatizado. Que na realidade já existe mas ainda precisa ser completamente interligado.

A abódoba celeste já nos mapeia através de sistemas de gps.

Nossas relações são mediadas pelas redes sociais.

Quando andamos com nossos celulares, deixamos rastros como formigas.

E se não andamos com eles, nas cidades onde o transporte público é automatizado, é possível saber quem anda por onde. É o caso do bilhete único em São Paulo.

As câmeras nos reconhecem facialmente, mesmo com máscaras.

Nossas compras são mapeadas através do uso do dinheiro eletrônico, fornecendo ainda mais dados quando informamos nossos dados pessoais.

Os edifícios já começaram a ser usados como aplicativos, inclusive informando seus termos de uso e privacidade de dados. Sem que haja a possibilidade de escolha verdadeira. Nessa sociedade fazer parte é aceitar esse contrato ou viver às margens, não há um meio termo.

Aliás, esse é o ponto que acho mais interessante. Aquilo que poderia ser visto como uma narrativa de cidade, de cidadania e de arquitetura, passa a ser entendido como um programa de computador feito com um objetivo específico, um mero aplicativo. É grave, porque o léxico e as práticas da engenharia de software vão inundar cada vez mais a arquitetura e o urbanismo, sem qualquer criticidade. A cidadania e por consequência a cidade serão apenas protocolos, tal como um internet protocol ou ip.

A grande consequência é que nossos corpos também serão cada vez mais reduzidos a números. Arquitetos e urbanistas não vão mais lidar com pessoas, mas sim com usuários. A relação é completamente outra. Deixaremos de ser entendidos como humanidade nos tornando um pacote de dados. A perfeita contraposição à sistemas como a Wood World Web ou Rede Mundial Madereira, que interliga cada planta.

Ora, para quem acredita que chegamos agora na era da informação, isso pode até parecer novo. Mas a arquitetura e o urbanismo e por consequência as primeiras cidades e grandes monumentos de antigamente sempre foram nada mais nada menos que o tráfego de pura informação. A diferença é que estamos vendo esse sistema deixar de ser analógico e invadir até as últimas consequências os nossos corpos.

Deixamos de ser humanos e seremos cada vez mais robotas.

É a smart city ou cidade inteligente em sua completude, inteira, cuja promessa é ser mais equânime mas se mostra cada vez mais sabida em nos matar.

A casa, quando e para quem houver, será tornar um espaço de resistência. Fazer comida em casa ou pedir pelo aplicativo da cidade inteligente? Domir contando carneirinhos ou usar aplicativos que nos acalmam? Ler um livro de papel que você foi até a livraria comprar andando e pagou com dinheiro de papel… Ou mais um show de realidade sobre qualquer coisa e o nada?

Como se a vida pudesse caber em um celular, ou cabe?

A única saída para nós é o que temos feito até aqui. A interligação de cada uma de nós a uma rede formada por nossos oris em diáspora, a Ori World Web. A nossa permanência em seus territórios analógicos como o terreiro, a brincadeira de rua, o tambor de crioula e sua fina articulação com os espaços de tecnologia, em seu sentido ampliado. Resumindo, todos os protocolos de vida através dos quais seguimos combinando de não morrer…

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