Confesso que demorei muito mais tempo que deveria para começar a ler a História da África, um reflexo de como o embranquecimento se deu em minha vida. Por muitos anos o centro cultural do mundo para mim foi a Europa, notadamente Paris e Berlim. A primeira por conta de sua efervescência durante o início do século XX, a segunda em função dos meus incipientes estudos sobre urbanismo no começo dos XXI. Uma era o centro da arte, a outra o centro de uma zoropa unificada. Depois me voltei brevemente para a gélida São Peterburgo, encanto que se deu com a vontade de ler os russos.
Essa estratégia tacanha de sobrevivência, que me fez ainda mais invisível num mundo de brancos, foi por muito tempo minha única possibilidade e gostaria de explicar porque. É muito simples – depois de experiências bastante traumáticas na infância e na escola, tentei me convencer de que o racismo não poderia existir num mundo de adultos. O motivo desse estratagema? Não enlouquecer. Se o racismo existisse, eu seria mais uma vez indesejável, inviável. Então, para que pudesse minimamente conviver em sociedade, disse para mim mesma que o racismo não existia.
Basicamente, o racismo me era de tal forma dolorido que, de uma maneira muito enviesada, a minha sobrevivência dependia de sua inexistência. Obviamente tudo isso se tornou insustentável com o tempo, sobretudo quando comecei a pleitear espaços que ainda são historicamente reservados para a branquitude como a universidade. E então, no que hoje sei inevitável, tive de confronta-lo. Posso dizer sem pestanejar que literalmente quase enlouqueci. Assunto para um outro texto. Sigamos.
Felizmente, encontrei um retorno. Aquela que talvez nunca abandonei completamente muito em função de minha paixão por História Antiga, em especial os egípcios sobre quem praticamente me tornei uma viciada. Viciada tosca. Porque nutria essa paixão através de material racista como documentários onde Hatshepsut, Nefertiti, Aquenaton, Ramsés e tantos outros faraós são brancos. Ou ainda através de conteúdo europeizado onde esses povos perderam em definitivo sua negritude. Vide Cleópatra com Liz Taylor, Theda Bara, Claudette Cobert, Vivien Leigh.
Esse é um mecanismo que funciona sempre que um indivíduo ou povo negro se encontra em destaque. Ainda é impossível para a branquitude reconhecer que determinados povos, conquistas e civilizações são negros. É preciso embranquecer impérios africanos a todo custo e se isso não for possível, minimizar ou atribuir seus grandes feitos para outrem, como faz o famigerado Erich von Däniken em sua tese sobre antigos astronautas. Motivado por sua própria ignorância e pelo racismo, ele ainda se esforça para afirmar que as pirâmides jamais poderiam ter sido construídas pelo povo negro egípcio.
Recentemente um documentário sobre Arsinoé, irmã de Cleópatra, afirmou que a linhagem dessas rainhas era negra. Claro que isso causou um pandemônio. com muitos egiptólogos fazendo tudo que é possível para desacreditar essa ideia. Reconheço que muitas vezes a egiptologia é uma ciência fragilizada, mas nesse caso podemos ouvir o que os próprios egípcios antigos tinham a dizer sobre si mesmos. Por mais que as linhagens tenham se “miscigenado” e de fato a “ascendência” de Cleópatra também seja grega, o mais importante é que os antigos egípcios denominavam a si mesmos como negros. Jamais poderiam ser classificados como uma população branca.
Egípcios eram homenzinhos verdes?
A branquitude depende do apagamento não só de simples mortais como eu e você mas também de todo e qualquer símbolo de afirmação, orgulho, tradição, ancestralidade. Esse é um dos seus principais alimentos. Vendem ideias estapafúrdias para esconder que não, não foram os deuses astronautas. Foi gente de pele escura, lábios grossos, cabelo crespo que construiu estruturas fenomenais e essenciais como as grandes pirâmides, o Grande Zimbábue. Conquistas que nada, absolutamente nada, devem a gente branca.
Assim, a prática da farsa sobre os egípcios persiste.
Um de seus mais novos capítulos é o clipe de Katy Perry, Dark Rose, onde a intérprete é caracterizada como uma faraó. Nos poucos minutinhos que consegui assistir o material, pude ver que homens negros são pintados de verde. Sim, homenzinhos verdes, o que me transportou diretamente para as teses, e estou sendo bastante diplomática, de Erich von Däniken. Ou ainda para a trilogia de A múmia, onde todos os egípcios se tornam brancos. Sim, é preciso mais uma vez e sempre desinformar de maneira perversa sobre a natureza essencialmente negra do Egito Antigo.
Imagina se em todo o material produzido sobre essa civilização, fosse adotada a estética negra de Michael Jackson em Remember This Time com Iman Abdulmajid, Magic Johnson e Eddie Murphy? Imagina se fosse amplamente respeitado o depoimento de Heródoto, Aristóteles, Estrabão e Diodoro de Sicilia, que descreviam os egípcios como um povo de pele negra. Imagina se a gente sai por ai dizendo que Osíris quer dizer “o grande negro”, que Isis quer dizer “mulher negra”, que em seu culta está a origem da adoração de Maria? Imagina, mais uma vez, se fosse alardeado que obras como a estátua de Nofret e Ra-Hotep são mentiras para satisfazer uma branquitude racista desesperada tal qual o clipe de Kate Perry?
Como diz minha mãe, não ia prestar. E como é exatamente isso que temos feito, fica evidente a necessidade de se renovar a todo custo esse Egito Antigo artificialmente branco, feito para desviar nossa atenção como uma miragem. Felizmente, pesquisadores como Cheikh Anta Diop demonstraram com muita elegância o fato de que egípcios antigos era negros, respeitando o modo como esse povo chamava a si mesmo: kmt ou negro. Pois é, não adianta espernear, nem gastar milhões em vídeos clipes. Nem continuar fazendo filmes.
Nós não precisamos de seus símbolos. Nós temos os nossos.