Negra mina quando anda deixa rastro no caminho: de Thereza à Tereza Légua, nossa grande mãe e amiga

Originalmente publicado em 12/11/2021 em Indigestivos Oneirophanta e declamado à comunidade Kwe Mina Odan Axé Boço Dá-Hô em 07/11/2021 na presença de Dona Tereza, um dia após uma cerimônia fechada em honra aos seus 40 anos e a todos os encantados da casa.
0 Shares
0
0
0

Filho de Légua não se toca nem com o dedo
Seu Légua é de Mina e a Mina não é brinquedo

Escrever sobre o Tambor de Mina é uma grande responsabilidade. Sou uma vodunsi no Kwe Mina Odan Axé Boço Dá-Hô, onde mora o Rei Menino e reina uma princesa, encantada da família do Rei Sebastião, Princesa Flora. Comunidade cujo governo foi especialmente confiado à encantada Tereza de Légua Boji Buá.

Além de ser iniciada para o vodum nessa casa, também me dedico a pensar esse território e os encantados que ali moram, como resultado da diáspora atlântica que ainda se esparrama por dentro do continente, desde o reino do Antigo Daomé.

Até o momento, não senti que era oportuno de escrever e publicizar minhas pesquisas, apesar de ter o consentimento e a confiança da sacerdote que me iniciou, a venerável Onontochê Sandra de Xadantã ((A Onontoché Sandra de Xadantã funda nossa casa em 8 ou outubro de 2011. Inciada em 1984 pelo saudoso Toy Vodunnon Francelino de Shapannan, Príncipe da nossa Nação e conhecido como Pai Francelino.)), carinhosamente chamada de Mãe Sandra.

Escrever exige muito mais que o respeito pelo sagrado e pelos mais velhos. Não nos esqueçamos que a nossa sanha por postar e postar e postar, nos fez nomear as guerreiras Ahosi ou Mino ((As Ahosi ou Mino eram responsáveis pela guarda real no Antigo Daomé, passando por um intensivo treinamento militar. Foram a inspiração para as guerreiras do filme Wakanda e tem sido chamadas de Amazonas em textos franceses e brasileiros.)) como Amazonas, como se nossas tradições só pudessem ser entendidas à partir de um suposto correspondente branco.

Além disso, demanda ciência e reverência pelas pesquisas que foram feitas por nomes como Sergio Ferretti, Mundicarmo Ferretti e Reginaldo Prandi. E ao mesmo tempo, quem sabe, um pouco de ousadia e talvez ingenuidade para inscrever um olhar próprio sobre o que é a Encantaria.

Do latim incantare, encantar poderia ser literalmente o ato de cantar em algum lugar. Popularmente também é lançar um feitiço com raízes em facticius, característica daquilo que não é uma imitação ou ficticius. Ou seja, talvez não seja deslocado dizer que Dona Tereza é uma grande feiticeira, se considerarmos o sentido latino da palavra.

Um existência que nos encanta com a sua presença, sempre tão bem arrumada e altiva, exalando profundidade e sabedoria. Fazendo o mundo parar para vê-la cantar e rodar sua saia mais alto e mais rápido que todas. Ninguém consegue fazer como Terezinha fez e faz… Quando dá aquele abraço de mãe ou pede para que cada um na mesa escolha uma música para que cantemos, ou melhor, encantemos junto.

Continuando, para falar da encantada Tereza, precisamos falar da Encantaria. Uma dimensão ao mesmo tempo material e imaterial, caracterizada pela palavra em toda a sua originalidade, para além de toda e qualquer trivialidade. Territórios que não podem ser mesurados em quilômetros e cuja história corre para trás, sem ser contada em segundos, horas, meses, anos.

Oh Tereza Légua, filha de Légua Buá
Traz agua pra mim beber
Traz folhas pra me banhar
Segredo da meia noite na praia do Ribamar

Para o Tambor de Mina ali moram aqueles que não morreram, se encantaram. Se organizam em parentesco, sendo a Família do Codó chefiada pelo preto bem pretinho Légua Boji Buá da Assucena Trindade. Tive a honra e o privilégio de ter sido escolhida para ser filha de sua filha mais formosa, a grande Senhora do Codó.

Por opção metodológica e em respeito à minha vivência e aprendizado no Kwe, como dizemos com carinho, não tenho a pretensão de escrever sua verdadeira história, mas um pedacinho de uma caminhada que compreendo ser imensa ao longo de 40 anos.

Afinal, Dona Tereza é o múltiplo sempre diferente e o mesmo. Se apresenta em cada ori de forma única, porém sempre daquele mesmo jeitinho que é imediatamente reconhecido por seus filhos. Como coloca o chapéu, o movimento da cintura, o olhar que se volta para o futuro e como se identifica como uma artista, por exemplo.

Com ela aprendi que o conceito de raça é uma invenção colonial. E jamais me esquecerei daquela tarde em que contou em detalhes sobre a violência de sermos sequestradas de áfricas, arrancadas da terra natal, da família e dos amores. O que me fez entender que a Encantaria também é um conjunto de memórias ancestrais vivas.

É com ela que vivo a paz quilombola estudada por Beatriz Nascimento. Dona Tereza é a minha primeira orientadora pela experiência, clareza e sofisticação de pensamento. Ela que sempre, sempre, sempre responde com toda paciência do mundo às perguntas mais elementares. E que assim sempre me surpreende com uma sacada que só ela poderia dar…

Os mais velhos contam que os Légua trabalham tanto na linha branca quanto na linha preta. O que sempre nos faz perguntar para Dona Tereza se ela é uma pombagira… Para sempre ouvirmos a mesma resposta intrigante e engraçada de que sua pomba é… Fixa. Essa encantada é assim, uma mulher de fundamentos e fundamentada, que diz grandes verdades sorrindo. E nos convida a pensar.

Para nós, filhos de terra onde vodum passeia, seu nome é sinônimo de alegria, inteligência, civilidade, amor e amizade acima de tudo. Uma grande cerimonialista e diplomata que transforma em grandes ocasiões todas as quartas-feiras em que recebe filhos e amigos na croa ((Dizemos croa como um sinônimo de ori, expressa a história de um encanto em determinada cabeça ou história.)) de Mãe Sandra para nos ouvir e nos guiar através das grandes questões da vida e da espiritualidade.

Somente os incautos se colocam no seu caminho. Dona Tereza é uma encantada muitíssimo séria. Trabalha através da pulsão de vida, como acredito fazerem os encantados farristas ((Os encantados considerados farristas são brincalhões e risonhos mas sempre muito sérios.))… Uma grande mãe que jamais se desviará de sua missão de ensinar. E o tamanho da lição certamente vai depender de nossa capacidade de compreender um gesto, um olhar, uma ação assertiva ou até mesmo o silêncio. Não nos esqueçamos que ela come um boi, começando pelo rabo.

Quando cheguei no Terreiro
Eu vi salão balancear
Olha por cima do pindovar
Cabloco é chuá, chuá

Eu acabei de chegar mas…

Eu estava lá para ouvir como foi chamada em terra por Toya Jarina, encantada e princesa da família da Turquia na croa do saudoso Pai Francelino. Como se apresentou no salão. Também estava lá para vê-la abraçar Dona Mariana na croa de Mãe Patrícia de Akossi festejando o aniversário de fundação da Casa das Minas de Toya Jarina numa das demonstrações de afeto mais emocionantes entre encantadas que já pude presenciar.

Eu também estava lá para ouvir a Mestra da Cultura Graça Menezes cantar uma cantiga que lhe deu de presente, quando fez todos darmos 38 pulinhos, uma para cada ano na croa de Mãe Sandra. Eu também estava ao seu lado numa dessas inesquecíveis noites encantadas em que a vi abraçar a querida Bea e a jovem Senami, uma descendente da família real daomeana, a quem chamou de família.

Traz o terço de Maria pra Terezinha rezar ao pé da cruz
Reza o terço Terezinha e a deus vamo adorar
Reza o terço Terezinha e deixa o povo saravá Jesus

E certamente é um prazer contar como Dona Tereza me presenteou com um terço de Nossa Senhora das Graças, com contas azuis bem clarinhas, entregue em minha casa apenas duas horas depois de eu falar no tempo ((Os encantados dizem que são o vento. A expressão no tempo é usada para os momentos em que nos comunicamos com eles falamos com eles quando não estão perto materialmente, incorporados em algum filhos.)) que o meu estava quebrado. Para depois me perguntar se tinha gostado da prenda ao me receber em sua casa, sem que Mãe Sandra soubesse do acontecido.

Mas foi somente depois de ouvir sobre o trabalho de Costa Peixoto que comecei a dizer para Dona Tereza que sou sua biógrafa não oficial. Certamente uma grande ousadia a minha, sempre recebida com um sorriso discreto e o convite para que eu conte aos presentes essa estória mais uma vez.

Como é Dona Charô, como é mesmo essa estória?

É o que farei aqui, por ocasião dos 40 anos de Dona Tereza na croa de Mãe Sandra.

Tudo começou quando nossa comunidade entrou em contato com um dos mais importantes documentos da colonialidade brasileira, a Obra nova de língua geral de mina, escrito por António da Costa Peixoto em 1741 e editada em 1945 por Luís Silveira. Um dicionário que traduz expressões e palavras do Ewe-Fon para o Português e revela os caminhos pelos quais o vodum passeia.

Precisamos nos lembrar que os colonizadores sempre estiveram cientes de que usar seu próprio idioma é estratégico para a resistência. E o Marquês de Pombal, ministro do rei, estabelece em 1757 com a lei Diretório dos Índios o uso obrigatório do Português nas colônias. O que também se estendia aos pretos de além mar, obviamente. Uma política que certamente teve em conta o ciclo do ouro em Vila Rica, onde se passa a nossa estória.

Aqui, destaco a motivação colonial de Costa Peixoto sobre a importância de compreender os códigos, a comunicação entre os escravizados ao explicar que “com curuzid.e trabalho, e desvello, se expoz, em aprendella, p.a tembem a emsignar, a q.m for curiozo, e tiver von.de de a saber”. Não sem segundas intenções afinal…

“se todos os senhores de escravos, e hinda os que os não tem, souvecem esta lingoage não sucederião tantos insultos, ruhinas, estragos, roubos, mortes, e finalm.te cazos atrozes, como m.tos mizeraveis tem exprementado : que me parece de algũa sorte se poderião evitar a alguns destes descomsertos, se ouvece maior curuzid.e e menos preguisa, nos moradores, e abitantes destes payses”.

Em outras palavras, Costa Peixoto não estava dando voz aos pretos. Ou seja, registro dos idiomas dos escravizados mina serviu a uma demanda prática dos escravizadores: a dominação colonial. Como efeito colateral, a obra acabou por inscrever a população mina que colaborou com o autor na História de Minas Gerais e do Brasil como atestam pesquisas como aquela de Santos da Silva.

A importância da autoria negra mina da obra perpassa toda a obra mesmo transformada em uma pequena advertência: “hé necessi.o tomar parecer com algũ negro, ou negra mina, porq.to tem diferente pernumcia”. Ou seja, não foi possível construir, ler ou compreender a Obra Nova sem nós. E isso é um detalhe crucial para nossa prosa.

E como trazemos a ancestralidade em nossos corpos, é imprudente tomar o dicionário como um fenômeno puramente linguístico, objeto de estudo. As tradições e práticas atlânticas destacam o poder da palavra como a expressão do sagrado que não podem ser acessadas a menos que sejam ditas em voz alta, proferidas, pronunciadas. Ou seja, sem que um de nós com autoridade e conhecimento necessários pronuncie essas palavras, a coisa não anda.

O que não passou desapercebido por Dante Lucchesi ao resenhar Yeda Passos. A cosmogonia afrobrasileira está em toda a obra de Costa Peixoto. Ali, uma das mais poderosas personagens da religiosidade adjá-fon, Leba, é traduzido como demônio. O que revela o olhar árido e coisificador do coloniozador mas muito mais sobre os códigos negros que atravessam a nossa Ori World Web, a rede ancestral construída por uma miríade de oris em comunicação.

Mesmo séculos após a escrita, nós sabemos quem é Leba… Para a tradição diaspórica afromaranhense do Tambor de Mina, Legba ou Elegbara é um vodum, expressão do sagrado que deve ser a primeira a ser louvada, fundamento primordial da comunicação e dos corpos. E justamente por isso tratar de seu nome demanda desapego com a oficialidade e qualquer pretensão de se escrever uma história única como ensinou Adichie.

Se considerarmos a expressão Yè houé vau don ((A expressão “a alma deixou o corpo e está ausente” como foi apresentada por um sacerdote de Abomé, podemos :

= alma / Houé = estar ausente / Vau = distanciada/longe / Don = lá, ali

Parece explicar o fenômeno da incorporação no Tambor de Mina. Diz-se que a alma ou a consciência dos vodunsis rodantes dorme ou se ausenta quando incorporam. E o que acontece depois disso é que através da incorporação, tanto voduns como encantados continuam construindo estórias através de suas passagens.)) e como foi explicada para Baker, sobre o viajar no tempo e no espaço através do sagrado, temos a oportunidade de nos aproximar da relação bastante discutida entre esse vodum e o encantado que viajou o mundo antes de chegar no Brasil, Seu Légua. Pai de todos os codoenses e também de Dona Tereza, sua filha mais velha.

Para o pesquisador e nosso bisavô de santo, Dom Jorge Itaci que o incorporava, Pai Légua é um vodum cambinda adotado por Seu Pedro Angassu e Rainha Rosa ao entrar nas Matas do Codó. Onde moram filhos como meu compadre Seu Coli Maneiro, Dona Maria de Légua, Seu Joaquim de Légua, meu padrinho Seu Expedito de Légua, minha madrinha Dona Zulmira de Légua, Seu Wanderley de Légua, Dona Rosinha de Légua, Seu Dominguinhos, Seu Leguinha, Seu Angacinho…

Aê negra mina
Aê negra mina
Negra mina quando anda
Deixa rastro no caminho

O que torna o contato e as conversas entre os pesquisadores Alex Yao Cobbinah (Universidade de São Paulo) e Christina Märzhäuser (Universidade de Mannheim) e os mais velhos da nossa casa ainda mais curiosas por nos apresentarem uma outra perspectiva sobre a pequena nota de advertência feita por Costa Peixoto.

Thereza Ferreira Souto, uma negra mina liberta, negociante, com propriedades na cidade e grande trânsito na sociedade do ciclo do ouro de Vila Rica é apontada por Araújo como uma das mulheres que teve importância capital na construção do dicionário que agora está para ganhar uma nova edição.

Seu nome se torna para nós, as filhas da diáspora que somos um atlântico que vem e volta, um nome de grande relevância assim como Ana Maria, Rita Dias, Luzia Gomes e Marcella Pires que foram casadas com o autor e que também colaboraram na obra. Faz entender o que estamos dizendo ao afirmar que a nossa memória é a nossa autonomia e ao mesmo tempo, a autonomia é a nossa memória. Elas nos falam sobre liberdade.

Quando revisito esse incortonável capítulo da diáspora Ewe-Fon na presença de Dona Tereza, sempre me questiono sobre quantas estórias ela tem pra contar. Uma vida para ouvir seria pouco. E sempre lembro daquela vez em que lhe perguntaram porque ouvia músicas que expressavam tanta saudade para vê-la responder que a vida de uma encantada também é conhecer muita gente, amar e vê-las partir…

Não poderia terminar sem dizer como é curioso perceber que a história em torno do dicionário acabou por se repetir. Entre 1733 e 1741, Thereza foi uma das negras mina que encantou ou investiu de axé as palavras de Costa Peixoto… Agora que Christina Märzhäuser trabalha numa versão atualizada da obra seguindo à risca suas instruções sobre a necessidade de dialogar com um negro ou uma negra mina… Acabou chegando à casa de Tereza Légua, na cabeça de Mãe Sandra.

Quando Dona Tereza termina de ouvir essa estória, olha para mim com uma risada discreta e incomum para quem sempre sorri com o corpo inteiro… Talvez pela minha ousadia e ingenuidade de me debruçar sobre uma estória que não se pretende oficial, ainda que não seja completamente oficiosa.

Ainda assim, decidi contar essa estória nessa ocasião. Afinal sempre me surpreendo com o fato de que é impossível contar com dignidade a estória de uma obra que rodou o mundo e de um dos seus autores, Costa Peixoto, sem falar de Thereza… E agora de Tereza, filha de Seu Légua, o mesmo que se confunde com o princípio da comunicação.

0 Shares
You May Also Like

Se essa rua fosse minha. Morte e morte nas grandes cidades.

A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas. Pode-se dizer o mesmo das ruas, no sentido de servirem a outros fins, além de suportar o trânsito sobre rodas em seu leito. As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça?

Je suis desolée Moïse Mugenyi Kabagambe

"Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano.", disse sua mãe.

Até o ano que vem, Latinidades!

Até o ano que vem, Latinidades! Que mais uma vez será de arrepiar com o tema Cinema Negro: "Queremos discutir o papel da mulher negra nessa cadeia cinematográfica, o seu protagonismo na produção e também como atriz.

Talvez a humanóide Ameca seja um alerta. Sobre nós.

O que vai acontecer quando Ameca se tornar capaz de passar tranquilamente por um ser humano? Afinal o que faremos quando aqueles que nos servem passarem a servir a seus próprios interesses? Talvez Ameca seja um alerta de que muito brevemente a Skynet despertará de seu sono. Não se trata da revolução de robôs, mas sobre o que faremos quando ela acontecer.