Racismo e câncer de mama: Charô Nunes fala sobre a relação entre pele, informação e tratamento

Existe alguma relação entre câncer de mama e o racismo? Talvez mais do que possamos imaginar. Segundo o instituto Susan G. Komen, dos Estados Unidos, mulheres brancas são ligeiramente mais propensas a desenvolver este, que é o tipo de câncer mais comum em mulheres, do que as negras.
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Originalmente publicado em 21/11/2019 no Hypeness por Gabriela Rassy.

Existe alguma relação entre câncer de mama e o racismo? Talvez mais do que possamos imaginar. Segundo o instituto Susan G. Komen, dos Estados Unidos, mulheres brancas são ligeiramente mais propensas a desenvolver este, que é o tipo de câncer mais comum em mulheres, do que as negras. Ainda assim, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, o INCA, afirma que, em mulheres com menos de 40 anos, o câncer de mama é mais comum na pessoas negras.

De fato, o INCA mostra em seu mais recente estudo que mulheres negras e pessoas sem instrução têm menos acesso à mamografia. Enquanto 66,2% das brancas fizeram exame, somente 54,2 das pretas fizeram no mesmo período. Mais de 80% das mulheres do sul e com ensino superior completo fizeram o exame, mas menos de 30% das do norte e sem formação chegaram a fazer mamografia.

Dessa forma, mulheres pretas por todo o país têm menos chances de serem diagnosticadas logo nos primeiros estágios e menos chances ainda de serem atendidas rápido, principalmente procurando SUS. A demora no tratamento em um país onde a saúde está em crise e o racismo ainda é latente, tudo fica mais complicado.

Um novo estudo confirma que mulheres negras e jovens enfrentam riscos elevados de desenvolver câncer de mama que não são apenas agressivos. Pesquisadores da Escola Universitária de Saúde Pública do Estado da Geórgia conduziram em 2019 um estudo que faz o recorte étnico.

Comparadas às mulheres brancas, negras e hispânicas tiveram maiores chances de serem diagnosticadas com câncer de mama triplo negativo, respectivamente. Mais de 21% das mulheres negras foram diagnosticadas com câncer de mama triplo negativo, em comparação com menos de 11% de todos os outros tipos de câncer de mama.

O estudo também aponta que mulheres com menos de 40 anos têm duas vezes mais chances de serem diagnosticadas com câncer de mama triplo negativo do que mulheres com idades entre 50 e 64 anos. Além disso, entre as mulheres diagnosticadas com câncer de mama, as diagnosticadas em estágios finais apresentaram 69% mais chances de ter câncer triplo-negativo do que outros tipos.

Esses fatores, somados ao racismo e a manutenção da população preta à margem da sociedade fazem com que mais mulheres não tenham tratamento adequado ao câncer de mama. Essa conjuntura permite que as pessoas pretas sejam mais privadas que as brancas ao acesso tanto à educação quanto ao atendimento médico rápido.

Charô Nunes foi diagnosticada com o câncer de mama após outras pessoas de sua família terem passado pelo mesmo processo. Ela é comunicadora, formada em arquitetura e urbanismo, feminista e coordenadora do Blogueiras Negras, plataforma que reúne mais de 400 autoras debatendo raça, gênero e classe. Charô integra ainda a diretoria da plataforma Me Representa, que mapeia candidaturas pró-direitos humanos.

Conversamos sobre a relação entre a cor da pele e o câncer:

– Como você relaciona o câncer de mama com o racismo?

O racismo tem uma relação íntima com o câncer de mama. Ainda assim, as grandes campanhas de prevenção parecem desconsiderar que este é um debate com estreita relação entre questões de raça, gênero e classe. Poucas de nós tivemos a oportunidade de fazer uma mamografia digital, por exemplo, que é uma grande aliada do diagnóstico precoce. Algo que pode ser fundamental para que possamos nos tratar enquanto ainda há boas chances de cura. O diagnóstico para uma mulher negra pode superar a média nacional, que é de até oito meses após os primeiros sintomas serem sentidos. E a sobrevida após o tratamento pode ser inferior se compararmos às de mulheres brancas.

– Qual a condição atual de acesso à informação e de tratamento dado nos hospitais para mulheres pretas?

Posso falar sobre a realidade sudestina, mais precisamente sobre a cidade de São Paulo. Aqui temos alguns hospitais de referência que têm feito um importante trabalho, sendo uma rota de fuga para algumas mulheres negras que de outra forma teriam sucumbido. Mesmo assim, o racismo se faz presente durante a prevenção, o diagnóstico, o tratamento e no acompanhamento oncológico necessários até que se receba a notícia de que estamos curadas. Muitas vezes, contamos apenas com a luta diária de profissionais de saúde negros que fazem toda a diferença para nós.

Para muitas, é complicado chegar até esses hospitais por falta de recursos financeiros e de mobilidade. Muitas pacientes não são informadas de seus direitos, como o uso de bilhete único preferencial, que está disponível para as mulheres após a cirurgia ou durante a radio e a quimioterapia.

Existem ainda os casos das que acessam a assistência médica privada, mas enfrentam condições diferentes em relação às pacientes brancas. Os exames são negados sem qualquer explicação e o interesse dos profissionais de saúde nem sempre é o mesmo.

Mas isso vai ainda mais longe, fazendo com que institutos de pesquisa tenham pouco ou nenhum interesse de se debruçar sobre a questão. O estudo “Jewels in our Genes”, realizado pela Universidade de Buffalo, demonstrou algo que muitas famílias negras brasileiras já suspeitavam: possivelmente existem casos de câncer relacionados à raça e hereditariedade que precisam ser melhor investigados.

– Quais os cuidados necessários para a prevenção e o tratamento do câncer de mama, especialmente para mulheres negras?

Quando o assunto é a prevenção e o tratamento do câncer de mama para mulheres negras, uma série de fatores precisam ser considerados. Faço parte de um grupo privilegiado de mulheres negras, apesar de ter demorado um ano desde sentir algo errado até ser de fato diagnosticada. E mesmo com toda a dificuldade em realizar o acompanhamento após a doença, inclusive por questões de saúde mental, alcancei uma década de sobrevida.

Você precisa se alimentar com muito cuidado, priorizar o consumo de orgânicos – já que os agrotóxicos estão por toda a parte -, diminuir o consumo de alimentos industrializados e de carne, fazer exercícios físicos com regularidade, parar com a bebida e o cigarro. Quase todas são aconselhadas a emagrecer, mesmo que nenhum debate sobre gordofobia e câncer de mama seja feito com a devida seriedade. É preciso ainda fazer acompanhamento genético, para mapear as chances de adoecer e readoecer, e entender seus históricos familiares, como é o meu caso. Porém, o custo é mais que proibitivo.

A atenção à saúde mental durante e após o tratamento precisa ser constante, o que pode influenciar a adesão aos cuidados necessários para superar o câncer de mama. E, apesar de todas as dificuldades, precisamos lembrar das palavras de pensadoras como Audre Lorde, “lésbica, mãe, guerreira, poeta” que foi vitimada por um câncer de mama. É urgente pensar sobre o autocuidado como um ato político de guerra, que não podemos deixar para amanhã.

– Qual você considera ser o papel da sociedade na melhoria do tratamento das mulheres?

A blogueira, enfermeira, militante e pesquisadora em saúde das mulheres negras, Emanuelle Goes, vai ao centro da questão quando afirma que “no campo da saúde o racismo e o sexismo sempre estiveram presentes nos ensinamentos, na forma de atenção e nos cuidados com os negros e com as mulheres, sendo orientado a partir de um modelo eurocêntrico, masculino e patriarcal”. Esses fatores estruturais, têm grande influência nas pequenas coisas do dia a dia, fazendo com que as mulheres negras morram muito mais. Como disse a médica Jurema Werneck, “o racismo faz isso. Pequenas negligências se acumulam, tornam-se graves, até que a pessoa morre”.

Muitas sentenças de morte são assinadas sem que os nossos corpos sejam examinados, por que as consultas têm menor tempo e menor qualidade. Muitas vezes os médicos brancos sequer olham no olho da paciente negras ou avaliam com compromisso a gravidade do quadro. Isso precisa mudar, mas não é uma coisa que acontece do nada. É uma perversa aliança de uma cultura que nos considera menos que gente e menos merecedora da vida. É uma das facetas mais cruéis de um projeto de morte que segue nos vitimando seletivamente num país onde ainda lutamos para que pessoas e instituições se enxerguem racistas.

– Você sente alguma mudança no tratamento dado às mulheres negras nos últimos anos?

Infelizmente o racismo na saúde ainda não está superado e atinge as mulheres negras vitimadas pelo câncer de mama de forma alarmante. A precarização do SUS, milimetricamente pensada em articulação com um projeto de sociedade genocida, é uma tragédia anunciada. Mais de 70% dos casos diagnosticados no Brasil acontecem quando a doença está em estágio avançado. Porém, quando consideramos a assistência médica privada, a tendência é completamente diferente. Num país em que a pobreza tem cor, esse dado é preocupante porque discrimina e condena mulheres negras à morte puramente por sua raça. Pior: sem que essas estruturas sejam consideradas na hora de se pensar políticas públicas eficazes.

Para as mulheres negras que acessam a assistência médica privada, os desafios também se impõe devido a muitas restrições aos tipos de exames prescritos e a qualidade do tratamento oferecido, muitas vezes desconsiderando a necessidade das pacientes em função de sua cor e tendo em conta quanto podem pagar.

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