O senhor BENEDITO SANTANA OLIVEIRA ESTÁ MORTO. Sua estória, entre tantas, é sobre o tratamento desumano dispensado às vítimas de racismo. Sobre o esforço para que o preconceito não seja classificado como invenção, exagero ou alucinação coletiva. Sobre um dos aspectos mais cruéis desse sistema de coisas de coisas invisíveis que segregam e matam como num pesadelo da vida real.
O RACISMO MATA
Benedito Santana Oliveira será enterrado no Cemitério São João Batista em Rio Claro hoje pela manhã, na mesma hora em que esse post é publicado. Deixa viúva e cinco filhos. Era paulista, negro, guardador de carros. Certamente conheceu a discriminação muito intimamente. Ainda nos meses que antecederam sua morte. O assassinato desse senhor de 71 anos, além de racismo, foi igualmente motivado por preconceito geográfico e de classe.
O delegado Marcus Vinícius Sebastião confirma que Axel Leonardo Ramos, um dos agressores, pertence à extrema direita organizada. Sua prisão preventiva foi negada duas vezes a despeito de seu envolvimento em um ataque a um jovem punk. O juiz entendeu que não existiam provas apesar de inúmeras evidências inequívocas. Há a suspeita de que o provável co-autor, Hélcio Alves Carvalho, também. Uma terceira pessoa ainda se encontra foragida.
Testemunhas revelaram que os autores fizeram questão de declarar que “paulistas são todos burros”, “os pobres tinham que morrer” e que “não gostavam de negros e velhos”. O racismo mata para vida, mata em vida. Socos, chutes e pontapés na cabeça do idoso já desacordado resultaram em traumatismo craniano, dias de internação, sofrimento familiar. Felizmente, dessa vez o juiz responsável pelo caso acatou o pedido de prisão preventiva dos acusados.
A PRIMEIRA REGRA SOBRE A DISCRIMINAÇÃO RACIAL
Malgrado sua gravidade, o ataque foi descrito como lesão corporal grave (pena de reclusão, de um a cinco anos) e não tentativa de homicídio (pena de reclusão de até 30 anos, quando qualificado). Impressiona não apenas pelo racismo que originou tamanha violência mas por aquele que impediu a correta descrição da atrocidade. O crime que não se consumou imeditamente dada a resistência de uma segunda vítima mais jovem.
O racismo mata porém muito frequentemente é considerado coisa menor, um detalhezinho. É o acontece toda vez que a discriminação deixa de ser o crime inafiançável que é, vira uma simples ofensa racial. Um detalhe técnico sobre o qual pouco se fala, ferramenta que não falha em favorecer o agressor. A quem se encontra em posição de fragilidade resta o ônus da prova. E mesmo que um conjunto sólido de evidências seja reunido, não há garantias.
Esse é o pior tratamento que se pode dispensar a uma pessoa que sofre ou sofreu por causa do racismo. A única certeza é que sempre vai aparecer alguém que se preste ao trabalho. Que fará questão de desqualificar seu sofrimento. Para essas pessoas a primeira regra sobre a discriminação é que os discriminados não deveriam falar sobre ela. Eles simplesmente não querem ouvir.
A PELE ESCURA SOB CAMADAS DE INVISIBILIDADE
Porém, há aspectos ainda mais repugnantes nesse filme de terror onde o racismo mata com extrema rapidez. Uma semana após receber alta, o idoso precisou ser internado novamente. Tinha peunomia, infecção urinária, respirava por aparelhos. Ainda assim, teve de esperar pela liberação de uma vaga numa unidade de terapia intensiva. O racismo se manifestava novamente, dessa vez através da desigual distribuição dos serviços de saúde.
Pobre, negro e velho, se tornou dispensável e incômodo demais. Sobreviveu por muito tempo. Vítima de crime inafiançavel, não teve sequer a oportunidade de ver o racismo que o vitimou ser caracterizado como tal, o atentado ser devidamente reconhecido. Em nenhum momento foi acolhido como deveria ter sido. Mais uma vez, o racismo matou sob diversas camadas de invisibilidade. Assim, à luz do dia. E quase ninguém viu.
O mínimo que a gente deve fazer é não esquecer.