Sobre uma guerra

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I have Klan robes and hoods hanging in my closet, given to me voluntarily by members who have quit the Klan since coming to know me. That’s what I’ve done to improve race relations. How many robes and hoods have you received as a result of your methods?”

Daryl Davis

Cheguei ontem e mesmo sendo uma novata inexperiente, preciso falar. Preciso.

Antes de mais nada, esse texto não tem a intenção de ser uma reprimenda. É um pedido. Apenas isso.

I. O DEVERES DOS QUE ESTÃO EM GUERRA

Essa é guerra como outra qualquer, triste. Existe porém uma surpreendente peculiaridade – é a mesma ideia que posiciona aliados em lados distintos. Poderia dar mais detalhes, mas em se tratando de um guerra, costumam ser irrelevantes. Tudo o que você precisa saber é que há muito alguns limites foram perigosamente vencidos.

Sim porque “o direito dos que estão em guerra de adotar meios para se ferir o inimigo não é ilimitado”, diz a Convenção de Haia. A destruição de bens culturais também é crime, leiam – crime. Já a Convenção de Genebra defende que prisioneiros de guerra e civis tenham sua honra e integridade preservadas. Atualmente são proibidas armas químicas ou biológicas.

É preciso perceber que os deveres de guerra não versam apenas sobre a destruição do inimigo, apenas evitam o potencial e indesejável aniquilamento mútuo. É em função disso que crianças, idosos e mulheres gozam de especial atenção. Daí a importância da proibição do o uso indevido da bandeira branca.

II. UMA ÚNICA DISCORDÂNCIA

As tretas em 140 caracteres fazem qualquer ideia parecer maior do que é. Me considero uma pessoa pouco combativa mas já tive meu quinhão com direito a rompimento intempestivo, sem espaço para diálogo em função de uma única discordância. As batalhas (muitos não sabem, nas há muito tudo começou) dessa guerra tem sido assim.

Outra característica importante – em rede o mais improvável dos exercícios é combater uma ideia sem odiar aquele que a professa. Como estão envolvidos direitos humanos e denúncias de que alguns grupos humanos são privilegiados, a complexidade do conflito é grande. Para piorar, ~a.l.g.u.m.a.s~ contendas tem evidenciando um certo despreparo e desonestidade em ~d.i.v.e.r.s.a.s~ gradações.

Demonstrações de raiva, adoção de rótulos odiosos, falsas proclamação de vitória, negação da teoria na prática, ofensas pessoais. Estratégias que, segundo Schopenhauer, são usadas para vencer um debate sem precisar ter razão. Há muito não se trata de estar ou não certo. O único problema é que, nesses termos, vencer pode significar destruir a si mesmo.

Não me peçam para apontar quem, quando, onde e porque, não vai ajudar em nada.

III. O DESPERDÍCIO DE RECURSOS

Quando sanidade foi a primeira vítima, há mais feridos que o usual. Nessa guerra também há pessoas cuja integridade física foi ameaçada, silenciamento, opressão de identidades, apagamento, agressão desmedida. Crimes sendo cometidos sem que quase ninguém se posicione publicamente fazendo que o clima de medo e insegurança aumente.

Eu confesso, tenho medo.

Hora de salientar que o acolhimento de feridos e a condenação vigorosa de todos os crimes de guerra não significam alinhamento automático com esse ou aquele oponente. Simplesmente não tenho como escolher posto que há muito a defesa de uma ideia foi deixada de lado. O que vejo são gente que estão do mesmo lado, do meu lado, se agredindo.

Talvez o mais triste aspecto de qualquer guerra seja a perda de nossa própria humanidade. Ou o desperdício de recursos que deveriam ser usados em conflitos com quem realmente interessa. Como você pode ver, não sou contra guerras, esse texto não presume santidade ou inocência. Mas acredito que esse conflito em especial não tem sentido.

IV. SE ELE CONSEGUE, CONSEGUIMOS

Em campos opostos gente cuja atuação que me é cara, gente de quem não quero ser inimiga. Simplesmente não quero, não consigo ser inimiga de vocês. E é em nome da ideia que todas acreditamos, reclamo que sejam estabelecidas regras para que essa e futuras disputas se tornem mais produtivas para todas.

Não quero posar de santa. Quero alertar para algo que me dei conta apenas essa semana, por conta dessa estória hedionda envolvendo um racista e transhomofóbico na Comissão de Direitos Humanos. De repente estava eu reproduzindo ataques à pessoa e não às ideias totalitárias que ele defende. Foi a Iara quem me mostrou que numa guerra não vale tudo.

Ainda mais quando envolvem pessoas que deveriam ser aliadas.

Tomemos o exemplo Daryl Davis, um negro nos EUA que se tornou amigo de gente dentro de um odioso movimentos racista de seu país – se ele consegue, conseguimos. Não é fácil e costuma ser entendido como sinônimo de fraqueza, covardia ou descaracterização de quem somos ou acreditamos. Mas é nisso que acredito. Afinal, estamos falando de pessoas com ideias justas e afins.

V. SARA E EU

Sempre me lembro de uma das pessoas mais fascinantes que tive a oportunidade de conhecer. Sara, uma jovem e expansiva jornalista. Não sei como mas nos aproximamos e costumávamos conversar. Um dia falei para ela sobre racismo. Confesso que a recepção não foi das melhores, mesmo assim pensei – um dia ela há de me ouvir.

Para minha surpresa, uma semana depois a Sara veio me mostrar estarrecida uma estatística acerca do homicídio de jovens negros. Finalmente percebera que a violência tem cor. Confesso que não foi nada fácil falar com ela, acredito que não foi nada fácil pra ela me escutar. Mas de alguma forma nos percebemos que não éramos inimigas e isso foi mais importante que qualquer diferença.

Como os envolvidos nesse conflito também estão do mesmo lado da ideia, acredito que a defesa dos direitos de guerra e um possível acordo são benvindos. Preciso acreditar nisso. É dessa forma que a gente faz um mundo melhor, que a gente se faz melhor. E certamente é isso que todas queremos.

Essa é minha opinião.

Peço apenas que não me odeiem caso discordem de tudo isso.


POST SCRIPTUNS

1. Ah sim, parece que Daryl Davis é da turma dos pró-vida. Ninguém é perfeito afinal.

2. Tenho a sensação de que a Iara sabia que eu escreveria sobre uma guerra.

3. Esse post é pra você que tanto gosto, admiro e preciso. Os dias não tem sido fáceis e com esse texto espero ter explicado porque tenho agido de forma aparentemente incoerente. Como disse antes, desaprovo os crimes de guerra com todas as minhas forças e gostaria que você viesse a público denunciá-los, mas isso não faz com que me posicione desse ou daquele lado da ideia em si.

Espero que você me entenda e me perdoe por isso.

MAIS POST SCRIPTUNS

Pensei que havia deixado isso claro, mas não. Então bora lá. Meu posicionamento não é de imparcialidade – SOU CONTRA OS CRIMES DESSA GUERRA e não contra as ideias e as pessoas de um lado ou de outro. Infelizmente não posso ser eu a pessoa quem vai denunciá-los. Não posso simplesmente expor quem decidiu não se expor ainda mais.


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