A comunidade LGBTQ precisa deixar de ser transfóbica: percebendo meu privilégio cisgênero

0 Shares
0
0
0

Todo dia é dia para se falar sobre transfobia. Ainda mais no Dia Internacional contra a Homofobia, uma ótima ocasião para toda a comunidade LGBTQ repensar seu posicionamento acerca desse problema muito mais que sério que segregamata. Agradeço a ativista Daniela Andrade a autorização para publicar sua tradução de um texto de Todd Clayton sobre o assunto.


A comunidade LGBTQ precisa deixar de ser transfóbica: percebendo meu privilégio cisgênero

Eu era um homem gay transfóbico. No inverno de 2011 eu estava sentado em meu carro com um amigo, estacionado em frente à minha casa amarela em San Diego, conversando sobre encontros amorosos e bares gays e tudo que aprendi desde que me assumi no ano passado. Então surgiu o assunto trans*: “Eu imagino como seja pois sou gay”, eu disse, “mas eu não compreendo completamente as pessoas trans*. Isso me faz sentir um pouco esquisito.” Eu lembro de uma colega de trabalho ter me dito que sua irmã assumiu-se transgênera e eu não soube o que dizer para ela. Eu lembro de ter feito algumas piadas. Recordo-me de ter me sentido desconfortável com pessoas trans* na cafeteria. E eu me agradeço por não ser mais aquela pessoa, entretanto ainda estou atento quanto ao progresso que devo fazer. Devo estar sempre aberto à mudanças.

Um abalo sísmico ocorreu dentro de mim quando eu vi a co-diretora de Matrix, Lana Wachowski, falando na entrega do Prêmio da Human Rights Campaign em outubro de 2012. Pela primeira vez ouvi uma pessoa transgênera falando com franqueza e vulnerabilidade sobre sua experência, e eu percebi – com uma claridade dolorosa – que muito do movimento LGBTQ, pelo qual eu me preocupo profundamente, e para o qual eu tenho dado minha energia e meu dinheiro, estava errado. As vozes das pessoas trans* estão seriamente ausentes, e muitas lésbicas, gays, bissexuais e pessoas queers desinformadas e insensíveis têm causado danos à comunidade trans* enquanto simultaneamente pretendem falar por essa comunidade. Apenas por que eu experencio um tipo de opressão não significa que eu conheça todas as opressões.

No começo de sua fala, Lana refletiu sobre um jantar em que ela esteve presente com um grupo de amigos e estrangeiros. “Do início ao fim do jantar”, disse ela, “eles repetidamente referiram-me a mim como ‘ele’ ou um dos ‘irmãos Wachowski’, algumas vezes usando metade do meu nome, ‘Laaaaa’, como uma ponte inconveniente entre identidades, incapazes ou talvez indispostos de verem-me como eu sou”. Eu era esse tipo de pessoa, pensei eu.

Foi nesse momento que eu compreendi, que eu senti pela primeira vez o privilégio de ser uma pessoa cisgênera – ou seja, alguém que o sexo designado no nascimento está em acordo com a identidade de gênero auto percebida. Como uma restauração religiosa, a história de Lana me converteu, abrindo meus olhos para um mundo e uma realidade da qual eu sempre fui completamente ignorante. Eu não fazia ideia, mas agora vejo o quanto o binarismo de gênero está profundamente enraizado e costurado às pessoas trans* com a ansiedade e o medo, em toda parte, mesmo em comunidades LGBTQs.

Quando fiz o check-in no aeroporto naquele mês, não pude obter um cartão de embarque até clicar “homem” ou “mulher” na tela. Quando fui para o banheiro público, percebi como seria difícil se as pessoas à minha volta me questionassem se eu estava me dirigindo ao correto. Quando mostrei meu RG para entrar em um bar, eu não me preocupei se o segurança iria me acusar de estar com um documento falso. Quando estive no médico, não imaginei se o profissional iria saber o que fazer com meu corpo. Assim como a densa manhã nublada, o binarismo de gênero pareceu ter tomado conta de todos os lugares, e eu me senti responsável como eu nunca havia me sentido por não ter lutado pela comunidade trans* que eu tinha incluído durante anos no acrônimo com o qual eu me identificava: LGBTQ.

Para as pessoas trans*, a violência é uma realidade urgente. Eu tinha um amigo em uma escola médica em San Diego que me telefonou no ano passado depois de ter assistido uma palestra sobre saúde das pessoas trans*. O palestrante convidado, um médico que trabalha quase que exclusivamente com pessoas trans*, explicou que não conseguia fazer com que seus pacientes dessem prosseguimento aos tratamentos. “E isso não é por conta de que essas pessoas têm morrido de doença”, disse ele, “Isso é por que elas têm sido assassinadas.” Em um relatório de 2011 sobre discriminação contra pessoas trans*, a Força Tarefa Nacional de Gays e Lésbicas demonstrou as taxas de violência contra pessoas trans* e pessoas em desconformidade com o gênero, com 78 por cento dos 6.450 participantes relatando ter sido vítima de violência pelo menos uma vez. Para as mulheres trans* não brancas, particularmente afro-americanas, a discriminação era muito mais severa.

Quando Obama inaugurou seu segundo mandato em janeiro, as pessoas gays em todo o país celebraram o fato de que o presidente dos Estados Unidos nomeou o casamento igualitário para casais de gays e lésbicas como uma questão de direitos civis. Entretanto, não faço ideia, mas posso imaginar o que meus amigos e amigas trans* pensaram.

O presidente Obama evocou Stonewall, aquele histórico motim que mudou o curso da história LGBTQ na América, mas falhou ao não mencionar que o evento foi conduzido, em grande parte, por corajosas mulheres transgêneras como Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson. As duas fundaram a Ação Revolucionária de Travestis de Rua para ajudar as mulheres trans* jovens e sem ter onde morar. Johnson morreu em Nova Iorque, em 1992, seu corpo foi encontrado boiando no rio Hudson. Em detrimento de todas as evidências de violência, a polícia fixou-se na hipótese de suícidio e recusou-se a investigar. O caso não foi reaberto até 2012.

No ensaio “Cruzando as fronteiras de gênero”, Virginia Ramey Mollenkott disse que “é vital para homens gays, lésbicas e bissexuais reconhecerem o nosso movimento como basicamente um movimento transgênero,” algo que eu poderia debater que nós temos deploravelmente falhado em fazer. Ela continua: “O fato de um gay mais afeminado e as lésbicas masculinizadas serem as pessoas que correm maior risco entre nós, deveria nos alertar para o fato de que a sociedade precisa saber menos sobre o que fazemos em espaços privados e se importar mais com o desafio acerca das concepções de gênero antiquadas”.

Como pessoas gays, nós temos desafiado papeis de gênero e expectativas quando nos beijamos. O pequeno e sujo segredo da comunidade LGBTQ, porém, a coisa que nós não queremos admitir, é que temos uma enorme estrada a percorrer até alcançar a inclusão e a segurança das pessoas trans*. Somos consensuais com nosso comprometimento com a justiça ao mesmo tempo que falhamos em reconhecer que temos sido cúmplices com a opressão contra membros em nossa própria comunidade.

“Se eu continuasse invisível, a verdade permaneceria escondida, e eu não poderia permitir isso,” diz um dos personagens do mais recente filme de Lana Wachowski, Cloud Atlas. A menos que incluamos todos e também os geralmente esquecidos membros trans*, o movimento LGBT que busca a equidade não estará lutando por justiça social. Nós devemos continuar dando espaço para vozes claras e corajosas como das Lanas, das Sylvias e das Marshas se nós quisermos realmente ver um mundo de amor e aceitação pelo qual temos marchado para construir por décadas.


Tradução
Daniela Andrade

Texto de Todd Clayton
The Queer Community Has to Stop Being Transphobic: Realizing My Cisgender Privilege


0 Shares
You May Also Like

Se essa rua fosse minha. Morte e morte nas grandes cidades.

A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas. Pode-se dizer o mesmo das ruas, no sentido de servirem a outros fins, além de suportar o trânsito sobre rodas em seu leito. As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça?

Até o ano que vem, Latinidades!

Até o ano que vem, Latinidades! Que mais uma vez será de arrepiar com o tema Cinema Negro: "Queremos discutir o papel da mulher negra nessa cadeia cinematográfica, o seu protagonismo na produção e também como atriz.

Je suis desolée Moïse Mugenyi Kabagambe

"Olha a foto do meu filho, meu bebezinho. Era um menino bom. Era um menino bom. Era um menino bom. Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano.", disse sua mãe.

Talvez a humanóide Ameca seja um alerta. Sobre nós.

O que vai acontecer quando Ameca se tornar capaz de passar tranquilamente por um ser humano? Afinal o que faremos quando aqueles que nos servem passarem a servir a seus próprios interesses? Talvez Ameca seja um alerta de que muito brevemente a Skynet despertará de seu sono. Não se trata da revolução de robôs, mas sobre o que faremos quando ela acontecer.