Após 125 anos de abolição, cada mudança ainda é um esforço de permanência

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A PEC das Domésticas certamente é uma segunda abolição. Acabou com a escravidão nas casas de senhores muitos patrões que, se pudessem, pagariam com migalhas o trabalho daquelas que são quase, quase da família. Muita gente espumou e bateu os pezinhos. Tanto agora como antes, a destruição de privilégio sempre faz jorrar chorume para e por todos os lados.

Como se um projeto abolicionista irresponsável permanecesse nas mentes e nos corações daqueles que gostariam de mudar as coisas deixando tudo igual. Burlar o pagamento dos encargos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas através da terceirização já é tendência. Afinal ter a casa limpa sem o menor esforço é muito bom, sem pagar adequadamente é ainda melhor.

Esse tipo de resistência, todo um ranger de dentes, que presenciamos quando da aprovação da PEC das domésticas é histórica. Torna-se evidente nos debates parlamentares acerca da extinção do tráfico negreiro e da escravidão, onde se encontram inúmeros projetos para retardar e muitas vezes impedir a emancipação de africanos e brasileiros escravizados.


MUDAR TUDO SEM MUDAR NADA

Falo especificamente da Representação à Assembleia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil que detalha em 1823 o projeto de José Bonifácio, conhecido como o patriarca da independência, sobre o fim do tráfico e da escravidão. Tremei, esse é o autor que dá início os 65 anos de debates parlamentares sobre o futuro da população cativa.

Amontoam-se argumentos religiosos e de civilidade recheados de boas intenções. Mas Bonifácio apenas discorda o efeito da escravidão sobre a economia. Entendia a compra de escravos como um investimento ruim, um empecilho ao desenvolvimento da agricultura segundo os padrões europeus. E talvez o mais importante, uma ameaça à unidade nacional ao exemplo de São Domingos.

Em nenhum momento se posiciona contra o racismo de seus pares, apenas arquiteta a reprodução e o controle sociocultural sobre os cativos. Seu projeto é baseado a) na manutenção do escravo como elemento servil por meio da aculturação e evangelização b) e no incentivo ao crescimento populacional daqueles que formariam um desejável exército abundante de mão de obra barata.


PEQUENOS GOZOS DOMÉSTICOS E CIVIS

Esse é não só o nosso dever, mas nosso maior interesse, porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direito, e começando a gozar desde já da liberdade e da nobreza da alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão amigos e clientes.

José Bonifácio, 1823

A coroa inglesa, premida pelas urgências da revolução industrial, criticava o tráfico de africanos desde o início do século. Era questão de tempo até que o fornecimento de africanos acabasse, o que virtualmente aconteceu em 1850 com a lei Eusébio de Queiroz. Uma lei para se fazer aplicar a lei que libertava parte dos escravos e penalizava toda a cadeia de criminosos envolvidos, até mesmo os senhores.

Como a oferta de africanos diminuiria em poucos anos, Bonifácio ideiava converter brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados através da concessão de alguns gozos domésticos e civis, segundo a verdadeira religião de Jesus Cristo. Na prática queria evitar insurreições e garantir que houvesse um significativo aumento da natalidade entre os escravos que pretendia em pelo menos 2/3 casados.

As famílias cativas não poderiam ser desfeitas, nem deveriam existir impedimentos à sua constituição. As mulheres que tivessem mais de 5 filhos seriam alforriadas. A gravidez recebe especial atenção, com a proibição de trabalhos pesados em seus primeiros meses por exemplo. Mãe e bebê também não poderiam ser separados em seu primeiro ano de vida.

Note que o texto é anterior a Lei de Terras (1850) que institui o acesso às sesmarias por meio da compra. Estamos numa época em que bastava tomar a terra para si, a menos que você fosse negro. Bonifácio, seguindo as santas máximas do envangelho, propõe então a concessão do direito de compra para os forros. Pagariam ao longo dos anos por aquilo que os outros simplesmente tomavam posse.

Outro aspecto importante é a criminalização de tudo aquilo que afastava o negro do trabalho. Sobretudo qualquer detalhe que o colocasse em contato com sua ancestralidade ou pudesse provocar saudade. Assim, para que não faltassem braços necessários à agricultura e industria, Bonifácio teve o cuidado de pensar em leis policiais contra os vadios e mendigos, mormente sendo estes homens de cor.


UM A ZERO

A ausência de discriminação positiva durante e imediatamente após o processo abolicionista converteu rapidamente os ex-cativos num exército de potenciais assalariados como queria Bonifácio. Não com diminutos gozos domésticos, mas através do racismo como fator estrutural, do abandono institucional e da criminalização.

As consequências são sentidas até hoje, sobretudo pelas mulheres negras, incomensuravelmente prejudicadas quando o assunto são os rendimentos. Segundo a 4ª edição do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça de 2011, a renda familiar chefiada por um homem branco é de R$ 997, mas é de apenas de R$ 491 se o arrimo for uma mulher negra.

Basicamente foram mantidas as mesmas barreiras intransponíveis que impediam a mobilidade social de grande parte da população após a abolição. Mesmo hoje, passados 125 anos, essa estrutura ainda é lucrativa para um grupo muito específico de gente bonita, elegante e sincera cujo racismo cordialesco alimenta, justifica e naturaliza tudo que foi dito até aqui. Essa era a ideia desde o começo.

Um a zero pro Bonifácio.

Esse post integra a Semana 125 anos de abolição.


O título desse post é uma referência à obra de arte de Tiago Romagnani Silveira, Cada mudança é um esforço de permanência de 2008.

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