Dois botões da camisa e falso dilema do decoro

Falemos sobre decoro, decência, vergonha e dignidade. Voltemos para um tempo em que a magreza era sinônimo de pobreza. O assunto não era a mulher que estava acima do peso, mas sim aquela pobre infeliz abaixo do peso.
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Originalmente publicado em 31/03/2012 no Biscate Social Club.

Falemos sobre decoro, decência, vergonha e dignidade. Voltemos para um tempo em que a magreza era sinônimo de pobreza. O assunto não era a mulher que estava acima do peso, mas sim aquela pobre infeliz abaixo do peso. Estamos nas últimas décadas da era vitoriana, em 1885. Drácula será publicado apenas em 1897. Madame Bovary foi escândalo em 1857. Ao rápido processo de urbanização das cidades e gradativo relaxamento dos costumes, são contrapostas uma série de regras de conduta, bons costumes e vestuário.

Chama a atenção o uso de um acessório que você certamente conhece, o bustle. Por debaixo de múltiplas saias e anáguas, evidenciava as nádegas e garantia a ilusão de alguns quilinhos a mais sem sacrificar a cinturinha de pilão. Foram as primeiras armações usadas por mulheres comuns. Antes esses acessórios eram fetiche nas cortes européias, notadamente a francesa e inglesa. Mas se tornaram tão populares que pasmem, eram usados até mesmo durante a prática de alguns esportes como… O tênis.

E já que estamos falando em antes e depois do bustle, que me desculpem os admiradores da Sharapova, mas o meu negócio é com a sereia Serena Williams. Acontece de a moça adorar um biquini. Acontece também de a mesma moça ser fotografada usando os mais belos e insinuantes uniformes de todos os tempos. Costuma usar um short bem escuro, seguindo o tom de sua pele, deixando sem fôlegos nós que temos pouquinho de má intenção. Um desbunde.

E por falar justamente em desbunde, ou a falta dele, a União Européia de Xadrez acaba de criar um código de regras que estabelece como as enxadristas devem se vestir. Sava Stoisavljevic, secretária geral do órgão, explica que a ideia surgiu a partir da observação das roupas usadas durante os jogos e cerimônias. Tenta justificar que, a exemplo de outros esportes femininos, trata-se “usar roupas adequadas”. Leia-se decotes. Apenas os dois primeiros botões da camisa podem permanecer desabotoados.

Nada foi estabelecido sobre vestidos e saias. Porém, Sava faz questão de salientar que muitas empresas indicam o comprimento adequado variando entre 5 a 10 cm acima dos joelhos. Admite que “jogadoras que ela viu usando saias curtas eram bonitas”, que “tornam os torneios mais atraentes” mas… Veja bem, “é preciso um limite”. Qualquer variante do tema seria um modo deselegante de desconcentrar a audiência e os adversários (algumas mulheres como as irmãs Polgar jogam exclusivamente torneios “masculinos”).

Sava, questionada sobre os uniformes femininos de tênis, argumentou pateticamente que os homens “comentam”. Que se trata de “fazer ou não algo a respeito”, que “é muito importante para a imagem do esporte”, que ”as regras serão mais úteis em torneios masculinos”. Que “não existe problema entre mulheres”, que “entre os homens é diferente”. Devemos concluir que todos os os enxadristas são heteros, imagine. E todos os decotes são coisa de um demônio chamado mulher.

De qualquer maneira, enquanto homens se sentiram aliviados por não ter de enfrentar os infames decotes de suas oponentes, outros esbravejam  argumentando que os torneios femininos se tornarão menos atraentes. Nós, jogadoras ou não, estamos nos questionando os porquês de um código estritamente feminino quando, oxalá, existem Serenas Wiliams e Paulas Radcliffs, essas malditas corredoras que insistem em usar shorts teimosamente diminutos.

Seria uma questão de verdadeiro decoro, que o dicionário descreve como “decência; vergonha; dignidade; conformidade do estilo com a elevação do assunto” mas também como “respeito de si mesmo e dos outros” ou… Que me perdoem as devotas e devotos da Navalha de Occam, mas desde menina aprendi a desconfiar da primeira alternativa posta à mesa, do primeiro acordo que se coloca. Vamos diretamente ao “ou”.

Esportes como tênis, vôlei, dança e corrida (que pratiquei com afinco antes de engravidar, sempre que possível com uma saia minúscula) não são tradicionamente considerados cosa mentale. A esportista não somente pode como deve ser bela. Serão consideradas as mais atraentes aquelas que forem combativas a ponto de serem temidas pelas adversárias, sem fugir daquilo que alguns constumam chamar de feminilidade.

Mas o xadrez, exercício intelectual por excelência, não combina com beleza, sensualidade. Afinal, o mundo é dividido entre mulheres bonitas e mulheres inteligentes e jamais, em caso algum, haverá superposição dessas qualidades. A grande pergunta é se nós e jogadoras como Sopiko Guramishvili, Sophie Millet, Antoaneta Stefanova, Irmãs Polgar aceitarão o falso dilema do decoro e acatarão o código ou…

Bem, você já sabe que prefiro o desvio ao atalho.

E agora deixa eu me apresentar. Esse foi meu primeiro post oficial. Meu nome é Charô Basta, ex-Lastra. Blogueadita, anticapitalista, praticante do desemprego voluntário, artista contraproducente. E minhas desopiniões são apenas o que são, desopiniões pessoais. Estarei aqui a cada quinze dias para trá lá lá com vocês. Fiquem atent@s, novas autoras estão chegando. Antes de ontem a Amanda. Ontem a Sara. Hoje moi.

E estamos cheias de post para dar, viu? #sejoga

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