Oi Freda, Oi Josephine

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Texto originalmente publicado em 05/01/2012 no Biscate Social Club.

Nossa estória é tão surpreendente que poderia e já foi mote para roteiro de cinema. A personagem principal é a jovem Freda Josephine McDonald, nascida aos 3 de junho de 1906 em Saint Louis, Missouri. Provavelmente era mestiça como evidenciam seus traços. Existe a possibilidade de seu pai ser alemão. Alguns apostam que era músico. Dizem, não se tem certeza. É sabido que era filha de uma lavadeira, ofício que exerceu quando criança. Conta-se que chegou a ter as mãos queimadas por uma patroa branca.

As 13 anos fazia performances na rua (oi Justin Bieber) para ganhar uns trocados. Quando a fome apertava, revirava o lixo. Dizem que foi descoberta assim. Outros citam o nome da diva (negra) Clara Smith de quem teria sido camareira. O fato é que se tornou corista por volta dos 15 anos. Era a última da fila de dançarinas, tradicionalmente a mais engraçada de todas. A essa altura já tinha recebido o rótulo de inadequada: era negra demais, vesga demais, magra demais, engraçada demais.

Hoje, a grande maioria dos textos sobre Freda desfiam clichês: Pérola Negra, Rainha Crioula, Vênus Negra, Deusa de Ébano (levante a mão qual mulher negra nunca ouviu esse elogio). Mas nos anos 20 era tudo diferente. A América racista não era a terra das oportunidades, muito menos para uma exótica dançarina negra. Após conseguir uma vaga na Broadway e conhecer as pessoas certas partiu para uma Europa que ainda desconhecia o Charleston e o Jazz.

A essa altura do post Freda já adotara o sobrenome do primeiro marido. Assina Josephine Baker, famosa por sua Dança Selvagem, uma saia de bananas. Apresenta-se numa Paris que vivenciava o nascimento da Art Deco e se interessava por arte étnica por conta da Exposition des Arts Décoratifs de 1925 e da Révue Nègre. Ernest Hemingway, Le Corbusier, Picasso, Dior, Calder. A lista de admiradores é virtualmente interminável. Fala-se que recebera mais de 1500 pedidos de casamento, o que não quer dizer muita coisa mas diz alguma coisa.

Em pouco tempo, oxalá, ganha o status de diva. E se o prestígio da “mulher mais conhecida do mundo”, como era chamada, pode ser medido pela estatura de seus dissabores, é preciso dizer que Baker rivalizava com as mulheres mais fotografadas de sua época. Só para citar dois nomes: “A indestrutível” Mistinguett (cujo par de pernas é lendário) e Glória Swanson,atriz hollywoodiana chamada simplesmente de “A estrela”.

Baker é muito mais que um olhar revolto, que sua tez acentuadamente pintada de branco e melenas milimetricamente encaracoladas (oi Lisa Minelli), muito mais que movimentos selvagens. A exemplo de Mata-Hari, foi espiã. Como Luther King, lutou contra o racismo numa terra onde o prestígio alcançado na Europa não teve imediata repercussão. E mais, muito mais que a Cruz de Guerra e a Legião de Honra, as mais altas honrarias francesas com as quais foi condecorada.

Só podemos imaginar a complexidade de uma mulher que comprou um castelo para os 12 orfãos de etnias diversas que adotou (oi Brangelina), que teve um chimpanzé (oi Jacko), um leopardo que usava uma coleira de diamantes (oi Madonna), um porco, passarinhos, gatos e cachorros. A mulher que, já consagrada mas sem dinheiro, não teve medo de retornar aos palcos apesar da idade. Artista admirada por Grace Kelly que lhe deu uma propriedade em Mônaco e provavelmente o túmulo onde está enterrada.

Estrela que atuou ao lado de Grande Otelo, cuja alma de Dzi Croquette (luxo) alterou o cenário artístico brasileiro da década de 70. Estamos falando de abra suas asas e solte suas feras. O mundo é uma azeitona e gente como Josephine é ainda é o recheio. Sua influência sobrevive. Naomi, Beyoncê, Tina, Iman, Leila. Grace Jones. Oi pra mim e oi para você. Somos todas mães, filhas, irmãs, amigas e amantes de Josephine. E o mercado fashionista sabe disso. A diva é o assunto do verão 2012, recentemente foi motivo de uma modesta campanha de uma joalheria brasileira, já foi boneca. Em 2008 foi imortalizada em cera. Diga-se de passagem, demorô.

Ainda assim gostaria de esquecer por um momento a jovem mulher que se esforçava para ser o mais educada que podia em sua vida privada por personificar a figura da mulata exótica. Também, por um momento, esqueçamos que dançava seminua (opa, nada contra mas nesse caso é preciso ir além). Que a imagem dessa senhorinha simpática e aprumada ganhe nosso imaginário. Essa senhorinha que foi estrela até morrer no palco como desejou.

Esse post poderia terminar assim lindo se não fosse um detalhe. Como detesto finais felizes facinhos, vou falar de uma cosia que sempre me interessou: a peruca da tal senhorinha. Por que Freda, sim Freda, foi uma mulher extraordinária e contraditória. Nunca usou um black power, mesmo em pleno debate sobre os direitos civis. Dizia que não tinha medo de ninguém mas foi acompanhada pelo racismo até fim. Como artista, como negra, temia e conhecia bem o preconceito. Tanto que, ao ser ovacionada nos Estados Unidos, chorou.

Josephine não matou Freda, aquela pessoa de carne e osso. Que ao contrário de La Baker pertencia a seu tempo, sofria com as críticas, mulher que escondeu último casamento por ele ter sido um juntamento e não um sacramento, que nunca usou um black power. Ah, como teria sido maravilhoso não é? Mas como tudo na vida de Freda se transformava em limonada, até mesmo isso não a diminui. Muito pelo contrário. Talvez essa tenha sido a grande estrela da estrela. Nada como conhecer os próprios demônios e com eles saber lutar e acordar.

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