Se essa rua fosse minha. Morte e morte nas grandes cidades.

A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas. Pode-se dizer o mesmo das ruas, no sentido de servirem a outros fins, além de suportar o trânsito sobre rodas em seu leito. As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça?
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Texto republicado pelas Blogueiras Negras.

A calçada por si só não é nada. É uma abstração. Ela só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas. Pode-se dizer o mesmo das ruas, no sentido de servirem a outros fins, além de suportar o trânsito sobre rodas em seu leito. As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais. Ao pensar numa cidade, o que lhe vem à cabeça?

Morte e morte nas grandes cidades

Se pudesse responder à pergunta de Jane Jacobs (Estados Unidos, 1916–2006) reconhecida pelo livro Morte e vida nas grandes cidades diria – morte. Crescemos ouvindo que somos escravos, mas também vendo imagens e ouvindo estórias de violência e morte sobre nossos bairros ao redor do mundo. Sobre a nossa rua. Aqui em São Paulo, aqui em Salvador, aqui em Recife, aqui em Manaus, aqui em Chicago. Somos as crianças desse aqui.

Moïse Mugenyi Kabagambe foi assassinato bem ali, na calçada. Iluminada, bem localizada, com gente passando. Enquanto durou a barbárie, quem assistia a cena fez nada, enquanto um estranho era morto. Um sonho de urbanidade pensado pela e para a branquitude que não consegue ver além de restaurantes, um lugar para tomar uma cerveja, trazer a família e ter onde sentar para comer.

Paulinha uma travesti negra foi morta no bairro Santo Antônio em Timon, no Maranhão. O crime aconteceu em pleno mês da visibilidade trans. Como disse Bruna Benevides, a transfobia é uma pandemia que não entra de quarentena.

O professor de artes marciais Yuri Carlton viu três de seus alunos serem levados para uma sala, onde foram chamados de “pretos safados” por seguranças do Big Bom Preço, no Shopping Salvador. Afastá-los de suas atividades não é o bastante, mas um bom começo.

O cantor lírico Jean William foi violentamente abordado pela PM enquanto viajava de Santos para o Guarujá. Se tornou suspeito por dirigir um carro de luxo de sua propriedade.

Yago Corrêa de Souza foi comprar pão. Agora, mesmo livre, entrou para o sistema.

Hiago Bastos vendia balas. Foi morto por um policial de folga. O acusado pelo assassinato vai responder por homicídio doloso, quando há intenção de matar.

Não estou falando daquela rua

Não estou falando daquela rua onde a gente se senta para contar estórias de trancoso. Nem das ruas encondominiadas onde crianças brancas e afortunadas podem correr de um lado para outro sem serem incomodadas. Muito menos daquela rua onde, apesar de tanta precariedade, a gente fazia do barro e do banho de mangueira uma alegria que só existe do lado de cá da ponte.

Estou falando de outra rua. Essa que exuda sua vocação colonial como tecnologia de morte. Usada para tombar corpos de pessoas estranhas ao mis en scène. Essa que nos faz viver com medo, sempre alertas a cada passo. Onde não sabemos quando e onde precisaremos reagir. E correr pelas nossas vidas.

Essa rua onde a violência funciona em profunda simbiose com os discursos e ações de ódio que se infiltram através das redes sociais corporativas, para alimentar os fantasmas de vidas passadas que seguem vivos e mais sedentos do que nunca. Uma festa esquisita com gente esquisita que representa a excelência da segregação brasileira, onde a gente quase nunca encontra a nossa gente em outro lugar senão aquele.

A venda de escravizados no site da Open Sea como NFTs chamadas Meta Slave ou Meta Escravos é um triste exemplo dessa via. Para falar no bom Pretuguês, imagens de pessoas pretas vendidas como mercadoria digital. A diferença é como fizeram isso. A tecnologia usada certifica um produto original e único mas que, sobre os nossos corpos ou imagens que nos representam, se tornaram marcas em ferro em brasa. Que nos identificam como propriedade de outrem, como queriam e querem os legítimos herdeiros da barbárie.

Não bastava ter essa imagens e dizer que eram escravizados.

Era e ainda é preciso ter a posse da cada uma delas.

Qualquer coisa que se queira pode ser vendida como NFTs. Podem custar até milhões de dólares apenas para satisfazer a um desejo incontrolável de posse. Isso é meu, meu, meu. No caso de uma imagem de George Floyd esse preço alcançou 69 mil dólares, um valor que evidencia que quanto vale ter satisfetio seu direito de posse, posse, posse.

Uma sociedade colonial em seus pormenores

Dessa gente que procura reconstruir uma sociedade colonial nas redes e nas ruas em seus pormenores. Gente de bem que estaria se deleitando num passeio qualquer nos tempos do imperador. Esses cujos projetos são os muros, os guetos. Porque a cidade precisa ser bonita, a cidade precisa ser saudável, a cidade precisa ser boa para os carros, porque a cidade precisa fazer negócios, porque a cidade precisa ser inteligente.

Cena de abertura de Corra!

Na cidade onde nossos corpos são pesadelos urbanos, boa parte do trabalho de arquitetos e urbanistas versa sobre dar um jeito na coisa toda. Desde a galerie de Walter Benjamin passando pelo calçadão, os bairros jardim e as super quadras, chegando até a cidade protocolar sabida em nos matar, sempre repito.

Olhando do lado de cá da coisa, como criança desse aqui e ao mesmo tempo como um corpo desobediente que agora se dedica a pensá-las, a rua sempre foi a rede por onde desfilam os discursos de ódio. E para que permaneça assim, sempre serão eles a projetar e à realizar. Para que possam naturalizar, justificar e incentivar a violência contra corpos negros nas cidades.

Mais ninguém

Não por acaso, aquela cena do filme Corra! (Jordan Peele, 2017) em que um homem é agredido em um bairro aparentemente tranquilo fez tanto sentido para nós. A experiência de andar num bairro branco sendo um homem negro diz muito sobre nós. A cena original mostraria uma família branca falando sobre a Disney alheia ao que acontece do lado de fora.

Talvez se perguntando se essa rua fosse minha. Eu mandava, eu mandava ladrinhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante, só para o meu amor passar.

E mais ninguém.

Em tempo, está no ar a plataforma Nandi, uma comunidade de criadores africanos que estão construindo um mercado cultural para bens digitais, que incluem colecionáveis, certificações de arte física, itens de jogos & arte digital.

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