Cristo se fez mulher: Gritos e sussurros, Ingmar Bergman

Para o diretor sueco Ingmar Bergman, o privado é o espaço onde crescem os bolores, os demônios. Adivinha, fiquei apaixonada pela tese, o fio condutor do filme: tudo acontece ao redor de uma moribunda, velada por duas irmãs e uma fiel criada cuja filha morreu recentemente. O cenário é uma casa de paredes insistentemente vermelhas, ornadas por madeira negra e emolduradas por móveis brancos. Uma arquitetura luxuosa de casa de bonecas, onde a felicidade é inviável.
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Originalmente publicado em 23/06/2012 no Biscate Social Club.

Ontem uma amiga reclamou por não conseguir ver televisão. Em menos de 10 minutos de uma novela que não sabia o nome, 3 cenas de violência contra a mulher. Você estava vendo Gabriela, falei. Por coincidência (ou não) uma das cenas que tanto a incomodou, um marido dizendo que usaria a mulher, também é retratada em Gritos e sussurros (Bergman, 1973). Sem exagero, um dos filmes mais belos e pertubadores que já tive a oportunidade de ver.

Demônios não gostam de ar fresco.

Ingmar Bergman.

Para o diretor sueco Ingmar Bergman, o privado é o espaço onde crescem os bolores, os demônios. Adivinha, fiquei apaixonada pela tese, o fio condutor do filme: tudo acontece ao redor de uma moribunda, velada por duas irmãs e uma fiel criada cuja filha morreu recentemente. O cenário é uma casa de paredes insistentemente vermelhas, ornadas por madeira negra e emolduradas por móveis brancos. Uma arquitetura luxuosa de casa de bonecas, onde a felicidade é inviável.

Um detalhe supreendente: são apenas 91 minutos de duração. O suficiente para falar sobre a eminência da morte, insinuar abusos sexuais, incesto, adultério. Suicídio, necrofilia, disputas entre classes sociais, ódio, vernizes sociais, distúrbios e vivências oníricas. Sempre com uma delicadeza monstruosa. Até porque, se fosse diferente, ficaríamos entediados ou sobrecarregados. Mas acontece é justamente o contrário, a vontade de olhar pelo buraco da fechadura só aumenta.

O filme é carregado de religiosidade sem julgamentos desnecessários. As personagens sempre estão a beber água e vinho, o tom sanguíneo em cada close extremo. A irmã que sofre e se torna capaz de interceder junto a Deus a favor dos vivos. É nesse momento que, oh, perdemos o fôlego com a encenação do drama de Pietá. Cristo como mulher. Só para citar ***uma*** das imagens que colocam Bergman entre os principais artistas visuais de seu tempo, ao lado de gente como Marcel Duchamp.

Mas o principal motivo para ver Gritos e sussurros é emocionar-se com ele. Sorver ou deixar-se levar. Saber quando ir adiante e recuar. Nunca disse que seria fácil, a vida não é entretenimento. Chorei litros, coisa que não costuma acontecer no cinema. Pensei na minha vida, na vida dos outros. Revivi a infância com uma irmã hoje distante. Questionei esse modelo de maternidade cega. E principalmente, em como não deixar a vida embolorar, essa possibilidade tão cruelmente presente em nossos dias.

Para quem é familiarizado com a filmografia do autor, há inúmeras recorrências. O caco de vidro, a presença de cadáveres e o embate de personas de Quando as mulheres pecam; a inexorabilidade do tempo de Morangos silvestres. O suicídio de O porto e O ovo da serpente. A crueldade sobre o olhar do outro e de nós mesmos sobre quem somos, de Juventude. Para aqueles que gostam de pintura, a maestria de Alfred Stevens que tão bem retratou as mulheres do século XIX.

Sigo ateia mas sei aproveitar coincidências divinas quando me aparecem: decidi falar sobre isso porque domingo, dia 24, o filme será ***exibido*** na Mostra Ingmar Bergman em São Paulo. Em Brasília, dia 5 de junho. O ingresso custa 4 reais com direito a meia, hohoho. Não perca por nada desse mundo ou do outro. O filme é, tipo assim, essencial pra gente que é biscate ou está em vias de. Ainda mais numa época em que os demônios continuam à espreita por entre frestas e carmins…

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