Relembre o estupro em Lado a Lado, uma aula de feminismo e boa dramaturgia

Quando Lado a Lado começou não tinha ideia de como essa novela seria tão importante. O grande feito da trama de Cláudia Lage e João Ximenes Braga é uma delicada combinação de apuro técnico, excelente pesquisa histórica, entretenimento e a denúncia do racismo e do machismo.
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Esse post foi publicado originalmente no Blogueiras Feministas, com a benvinda supervisão, correção e revisão de Bianca Cardoso.

Quando Lado a Lado começou não tinha ideia de como essa novela seria tão importante. O grande feito da trama de Cláudia Lage e João Ximenes Braga é uma delicada combinação de apuro técnico, excelente pesquisa histórica, entretenimento e a denúncia do racismo e do machismo.

Toda semana acontece alguma coisa digna de nota afinal não é todo dia que uma novela se propõe falar de questões que muita gente prefere fingir que não existe. Mas o capítulo televisonado há exatamente um ano foi excepcional e histórico – dá para acreditar um estupro, com direito à menção das questões de consentimento, foi mostrado em todo seu horror em plena novela das seis? Como disse, estou sob forte emoção e tentando entender o que aconteceu.

A conceituação do estupro

Um estupro em plena novela das seis foi comentado por todas feministas com muita emoção, algumas choraram acompanhando o desenrolar do conflito. E certamente todas ficamos muito felizes a despeito de toda a crueldade da cena que mostrou a protagonista Laura (Marjorie Estiano), uma jovem professora divorciada em busca de dignidade numa sociedade extremamente machista, sendo estuprada por um senador da República que lhe oferecera emprego.

Ele se mostra contrariado e confessa que ofereceu o emprego com a intenção de ter relações sexuais com a protagonista, afinal jamais contrataria uma mulher para ser sua secretária – para isso ele teria preferido um homem. Tudo assim, dito abertamente. Foi um frisson. Um dos detalhes felizes é que a opressão sofrida por mulheres no mercado de trabalho continuou a ser retratada no folhetim.

A recusa de Laura
A recusa de Laura, imagens – reprodução TV Globo.

A cereja do bolo foi o uso da à palavra consentimento, uma alusão ao conceito de estupro como toda ação, com ou sem penetração, feita sem a anuência do outro. E justamente por causa disso foi possível mostrar que até mesmo o ato de abraçar uma mulher (ou homem) sem que tenha havido o consenso é uma violência, uma violação posto que a vontade e o corpo de ninguém me pertence. E aí que mora a beleza do feminismo, a ideia de que é necessário.

A conceituação tão apurada da violência foi uma oportunidade singular para que repensar não somente a condição da mulher, mas de todo indivíduo que esteja em posição de vulnerabilidade. Só para falar de um caso muito prático e que me diz respeito pessoalmente, quero falar muito rapidamente do modo como eu e meu parceiro nos relacionamos nossa filha.

O estupro televisionado foi exemplar por mostrar tudo aquilo que não queremos para nós mesmos e para ela que, mesmo tão pequena, já entende e reproduz qualquer ato de violência presenciado. Para que ela me respeitasse foi preciso que eu desse o exemplo e a tratasse como um indivídua, como sujeita dos mesmos direitos que quero para mim e que tanto defendo na minha fala.

Mas voltando à novela em si, outra característica bacana da cena foi exemplificar que a recusa do outro não precisa e não deve ser negociada ou justificada. Laura, como eu e você, temos o direito de dizer não sem termos de nos explicar. Costuma-se dizer que uma mulher que abriu a porta da sua casa e se deitou na cama tem o direito de dizer não até o último minuto, pode se arrepender até mesmo durante o ato sexual.

O feminismo faz bem pra mim e pra todo mundo

No mundo ideal, se as questões de consentimento merecessem o devido respeito, a recusa sexual não seria um problema. Porque a mulher não foi feita para suprir quaisquer necessidade do homem, mas sim para viver e se relacionar com quem lhe aprouver. Porque o não significa não e insistência egoísta configura a prática do estrupo. Porque nenhuma violência deve ser tolerada.

O estupro de Lado a Lado também foi especial por ter ido até o fim. Houve a recusa, foi claramente delineada a violência e foi mostrado o depois – Laura sofrendo as consequências do estupro. O mais comum é que a mulher diga não e o homem, só para situarmos nos universos ainda heteronormativos das novelas, insista até arrancar um beijo a contragosto.

Muitas vezes os estupros se desenvolvem em conciliações na cama, como se fosse aceitável que os problemas dos casais fossem sublimados, como se fossem automaticamente resolvidos com uma trepada mais acalorada. Se isso costuma acontecer com você mulher, não aceite e questione o que muitos acreditam ser uma prática sem maiores consequências.

Delícia relembrar essa novela que além de tudo isso, nos fez repensar a ideia de que novelas são chorumes culturais, produções de menor monta. Essa lição aprendi com as feministas. É possível ver novela e se informar, isso tudo quando os autores são realmente bons e não insistem em dramalhões inverossímeis, embebidos numa psicopatia sem eira bem beira. O estupro em Lado a Lado foi mostrado em todo seu horror, uma aula de feminismo e boa dramaturgia.

E nós feministas estávamos lá para ver. Saudade.


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