Outubro Rosa – Falar de câncer de mama também é falar de racismo

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Originalmente publicado pelas Blogueiras Negras.

No exato momento em que escrevo, incontáveis mulheres negras estão em tratamento de um câncer de mama. Talvez você ou alguém próxima também esteja passando por uma situação parecida. Então, antes de mais nada, deixo aqui meus sinceros votos de sucesso. Que todas as mulheres, em especial as negras, que passam ou passarão pela doença sobrevivam. Sem racismo, com cuidado e acolhimento que todas precisamos nesse momento.

NÚMEROS

Nos Estados Unidos, apenas 78% das mulheres negras sobrevivem cinco anos após o diagnóstico de câncer, em comparação com 90% as brancas. Lá, embora a incidência da doença seja menor entre negras, são elas que mais morrem. Aqui a situação é possivelmente a mesma. Nós recebemos menos atenção desde a prevenção até o pós operatório em função do racismo institucional que se manifesta na assistência médica ou na sua completa ausência.

Duas pesquisas realizadas com mulheres adultas nos em São Leopoldo (2003) e Pelotas (2001) no Rio Grande do Sul atestam isso. “Nas associações de raça/cor com acesso aos exames de detecção precoce para a saúde da mulher, observou-se que, embora 53,4% e 77,0% de todas as mulheres da amostra tenham realizado exame de mama e citopatológico no último ano, apenas 43,4% e 68,6% das mulheres negras realizaram esses exames no mesmo período. Chama a atenção que 17,2% das mulheres negras nunca fizeram exame citopatológico, apresentando risco 100% maior que as mulheres brancas (9,7%).”

“Embora as mulheres negras façam mamografias com mais frequência que as mulheres brancas, no momento do diagnóstico a doença geralmente já se espalhou para outros órgãos em 45% dos casos de câncer em mulheres negras, versus 35% em mulheres brancas”, descobriram os pesquisadores norte-americanos. Esse tempo seria diminuído se houvesse mais campanhas de conscientização acerca da doença, do racismo entre os médicos, se fosse ampliado o acesso à assistência e tecnologias médicas.

ACESSO À TECNOLOGIA

Assim que as primeiras campanhas contra o câncer de mama começaram a acontecer na internet brasileira, tive acesso à informações que potencialmente salvaram a minha vida. Me foi devidamente enegrecido que, ao contrário do que diz o senso comum, a prevenção deve começar na faixa dos 30 anos ou até antes disso, dependendo do histórico familiar e hábitos. Que precisamos fazer o auto-exame todos os meses e mamografia todo ano. Revolta, pra dizer o mínimo, o fato de toda essa informação não estar disponível para todas as mulheres negras.

Muito cedo, tive a oportunidade (que deveria ser para todas mas não é, sobretudo se pensarmos nas mulheres negras e nas mulheres negras mais idosas, como mostrou uma das pesquisas acima) de tomar esses cuidados, motivada também por todas as lembranças de ver tantos dos meus lutando contra a doença. Mais tarde eu saberia que as pessoas da minha família são “programadas” para manifestar a doença e que os exames para ter uma melhor entendimento do que isso significa (e tomar providências como fez Angelina Jolie) costuma ser inacessível.

Tudo ia muito bem obrigada até que comecei a sentir dores. Os médicos me diziam que cancêr não doi e que eu estava ansiosa, impressionada demais com as mortes de minha família. Meu cuidado pela prevenção era visto como paranóia e gastei um ano correndo atrás de mastologistas até que fosse corretamente diagnosticada. Tive de persistir e insistir até que me fosse prescrita uma mamografia digital, que eu nem sabia que existia. O acesso à tecnologia não deveria ser um privilégio que potencialmente decide quem vive ou quem morre, deveria ser um direito.

O resultado chegou e pude provar que não estava alucinando. Não era eu quem estava errada. Eram as mamografias convencionais que não eram capazes de detectar meu tumor. Infelizmente, nem todas as mulheres negras tem a mesma oportunidade, mesmo quando se trata do exame convencional, apesar de vigorar a  Lei Federal 11.664 que garante a realização do exame no SUS à partir dos 40 anos. Ademais, nem todas estão informadas sobre a necessidade do auto-exame e de como fazê-lo.

Minha mãe, mesmo amparada por um hospital de referência e com médicos informados sobre nosso marcador genético, viu que o diganóstico também se deu após um ano inteiro de queixas e aflições, quando o tumor já era palpável e começou a crescer descontroladamente. Não houve aplicação da mamografia digital, o que a teria poupado de muito sofrimento. Assim como aconteceu comigo e com tantas mulheres negras, sua dor foi menosprezada em função do racismo. Quantas de nós, mulheres negras, estamos passando situação parecida (ou pior) nesse exato momento?

APÓS A CIRURGIA, MAIS RACISMO

O racismo não se manifesta apenas durante a prevenção e a fase de diagnóstico. Após a cirurgia, radioterapia e quimioterapia, também somos vitimadas pela ideia de que nossos corpos são considerados fortes, porque se acredita que resistimos mais às dores físicas e emocionais. Durante essa fase do tratamento, me foi dito que eu estava emocionalmente fragilizada com a doença (coisa que eu já sabia, mas não era só isso) e que poderia suportar muito bem as inflamações recorrentes que aconteceram depois da operação.

O médico já havia me feito o “enorme favor” de me operar rapidamente e tido cuidado de preservar o máximo de estruturas da mama. Ainda assim, fez toda a diferença do mundo não ter recebido um tratamento mais humano, que escutasse minhas dores e necessidades. Também tive de lutar para que a radioterapia fosse abreviada pois a pele do meu seio estava bastante lesada. Não, eu não estava aguentando apesar de toda a sorte que tive. E a mulher negra que não tem acesso à tecnologia, à assistência médica, como é que fica?

Um comentário feito a uma paciente negra que conheço dá indícios da desumanidade com se trata ou destrata corpos e existências negras. Seu oncologista simplesmente lhe disse que ela “já deveria estar morta”. Assim, com toda a frieza que essas palavras podem carregar. Se ele estava procurando promover algum conforto e encorajamento, me pergunto porque não dizer que ela é uma sobrevivente. Infelizmente nós sabemos as resposta. O racismo acontece também na ausência de apoio psicológico e acolhimento, tão necessários nesse momento.

FALAR DE CÂNCER DE MAMA TAMBÉM É FALAR SOBRE RACISMO

cartilha dos direitos do paciente com câncer pode ser consultada online com grande facilidade (e mesmo assim nem todas as pacientes são apresentadas a ela, como eu mesma não fui) mas não costuma ser impressa num país onde aproximadamente 97 milhões de pessoas não têm acesso à internet. Há dez anos, as chances de uma pessoa branca ter acesso à Internet era 167% maiores que uma pessoa negra. Mais uma vez, assim como é o caso da mamografia, somos vítimas do racismo que estrutura a nossa sociedade em todos os aspectos da vida e prejudica nosso acesso à saúde, tecnologia, informação e educação.

Até eu começar a cuidar do meu corpo e adoecer, apesar de tantas histórias, não tinha consciência de que era possível prevenir e ter a cura, sobreviver. Acreditava que o câncer é uma setença de morte, quando não é assim. Porém, quando a doença se alia ao racismo, se torna um obstáculo mais difícil de contornar. No caso de câncer de pulmão e se fumantes, temos 5 vezes mais chances de adoecer em função de uma alteração genética que muitos de nós temos. A não difusão dessas informações é um crime, serve ao genocídio.

É preciso pensar além dos cuidados individuais (sempre necessários, claro). Precisamos de mais médicos negros para que nossas demandas sejam contempladas em pesquisas, por exemplo. Precisamos combater o racismo que existe entre cuidadores, para que sejamos tratados com humanidade. Precisamos difundir e tomar iniciativas de prevenção e cura com as informações que já temos. Fazer com que o acesso à tecnologia e assistência médica seja uma realidade. Em resumo, falar de câncer de mama é pleitear educação, conscientização e acesso à tecnologia e informação. Mas também é falar de racismo e combatê-lo.

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