Preciso me lembrar da alegria, Memórias do câncer

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Preciso me lembrar da alegria, da leveza, do riso tão vitais para minha vida e minha saúde. Caso contrário, o outro (câncer) sempre estará esperando para me devorar até o desespero novamente. E isso significa destruição. Não sei como, mas é.

I need to remind myself of the joy, the lightness, the laughter so vital to my living and my health. Otherwise, the other will always be waiting to eat me up into despair again. And that means destruction. I don’t know how, but it does.

Audre Lorde, Memórias do Câncer

Todos pareciam indistintamente desesperados. Essa é a única certeza que tenho ao lembrar da cena que emoldurava aquela cena.

Talvez Seu Alcides estivesse ali no fundo do quintal, descamisado e sem seu boné quadriculado à esconder a careca negra e reluzente, ladeada por brancos cabelos encaracolados e curtos. Já não me lembro se sua esposa, aquela senhora baixinha de cabelos igualmente brancos e curtos, estava com seu costumeiro pegnoir estampado com pequenas florzinhas sobre um fundo rosa ou azul. Se também sairam de casa assustados deixando a porta entreaberta a revelar um enorme corredor enfeitado de samambaias para ver aquele ranger de dentes, não saberia dizer.

A vizinha da casa ao lado, que morava num quarto, sala, cozinha e banheiro protegidos por um portão branco encostado em quatro degraus cada um de um tamanho e que finalmente caiam no mesmo nível do pátio central, olhava por cima de um muro de concreto que há muito não via uma tinta. Talvez os bem mais altos conseguissem ver um pouco mais do que seu dois grandes olhos arregalados e aqueles bobes cuidadosamente enrolados, amarrados por um pano de cabeça. Certamente estava na ponta dos pés.

Do lado de dentro de uma das casinhas, aquela que era um quarto e cozinha onde moravam quatro pessoas servidas por um banheiro que ficava do lado de fora, uma velha de cabelos brancos colocava as mãos na cabeça em desespero. Chorava. Já havia defumado a casa, mas nada parecia adiantar. Na mão direita trazia um terço de Nossa Senhora de Fátima. Suas rezas agora eram indistintas lamúrias que se misturavam ao conversê e curiosidade de muitos.

Do lado de fora, um homem pequeno, sem camisa, usando uma bermuda, olhava com carinho para o rosto daquela mulher preta que chorava sobre aquela maca que estava metade do lado de dentro, metade do lado de fora. Ela também colocava as mãos na cabeça. As duas. Como se quisesse fazer aquela dor sumir. Aquela que tirou o sono de toda a casa e certamente do vizinho de parede.

Foi ela quem disse que tudo ficaria bem.

Uma mulher jovem, tão jovem quanto, se debruçava sobre aquele corpo deitado, entregue à dor. Naquele dia ela não estava com o cabelo enrolado em bobes, muito menos com pasta, certamente havia se penteado há pouco pois as ondas em sua cabeça eram altas e reluzentes. Era a voz da razão, estava acostumada com tudo aquilo. Era seu métier. Procurava colocar cada uma das personagens em seu devido lugar, inclusive aquela pequena criança de não mais de 4 anos que tentava entender o que estava acontecendo.

A maca acabou indo embora.

Ao cruzar o portãozinho do pátio deixou uma tristeza sem fim.

A memória não me permite dizer se ao voltar alguns dias depois, aquela mulher trazia no colo uma bebê, enrolada com um pano feito de cheirinho de rosa, tecido em crochê feito de lã de algodão. Se foi nessa época em que aquelas fraldas brancas, dessas que são lavadas a cada uso, passaram a enfeitar todo o varal com desenhinhos de criança. Não sei se todos poderiam ouvir aquele choro.

Mas foi nesse dia em que ela voltou.

Enfim poderíamos desenhar juntas novamente.

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