Candyman como um pesadelo urbano

O monstro mais assustador do mundo são os seres humanos e tudo o que somos capazes, especialmente quando estamos juntos. Estou trabalhando nessas premissas sobre esses diferentes demônios sociais. Esses monstros inatamente humanos que fazem parte da maneira como pensamos e interagimos. Cada um dos meus filmes será sobre um desses diferentes demônios sociais.
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A presença de corpos negros na cidade de Chicago

“A tarefa realizada por Haussmann em Paris corresponde ao que preisa ser feito em Chicago”, disse o autor do Plano de Chicago, o arquiteto e urbanista Daniel Hadson Burnham (1846 – 1912). Seus objetivos eram “devolver à cidade sua perdida harmonia visual e estética, criando, assim, o pré-requisito físico para o surgimento de uma ordem social harmoniosa”. Sabemos o que isso quer dizer, a expulsão da população que enfeiava a cidade.

Um parenteses sobre Paris.

Detalhe é que a cidade foi fundada pelo negro livre Jean Baptiste Point du Sable. No século XX Chicago passa a atrair a população negra de maneira massiva com a Grande Migração de pretos em direção ao Norte entre 1910 e 1970. Consequência da política de “separados mas iguais” e a implementação de uma série de leis racistas conhecidas como Jim Crow no sul dos Estados Unidos promovendo a separação institucionalizada e sistemática entre brancos e negros.

Hora de remover os cortiços, que também pode ser entendida como uma reação violenta diante de uma legislação que procurava pelo menos em tese e no papel, a defesa dos direitos civis dos pretos. Em outras palavras, estamos falando da mesma coisa que aconteceu no Rio de Janeiro e São Paulo: a construção de grandes avenidas ao estilo europeu e remoção das populações que deixavam a cidade feia.

É o que empura a população negra rumo ao Norte.

Onde se concentrava a população negra em 1934: o cinturão negro. #

Uma promessa de vida melhor para alguns. Um problema aos olhos de pensadores e planejadores urbanos. “O altíssimo índice de delinquência, juvenil e adulta, hoje existentes nas comunidades negras do norte, deve-se em parte, ambora não inteiramente ao fato de que esses migrantes não são capazes de se acomodarem de imediato a um meio novo e relativamente estranho.”, como escreveu Robert Park.

Na Chicago de 1855 foi legalmente proibida a segregação entre negros e brancos, o que a tornava ainda mais atraente para quem buscava escapar do racismo institucionalizado. Em 1870, veio o direito ao voto, provocando pânico em alguns setores daquela população. Em 1874, foi proibida a segregação escolar. Mas apesar do Ato dos Direitos Civis, a vida na cidade não refletia esse avançado arcabouço jurídico. O que deu origem ao chamado Cinturão Negro ou Metrópole Negra onde os negros se concentravam.

Outros guetos existiam mas esse era diferente.

A aposta era de que essa segregação voluntária deixaria de existir a medida em que pessoas negras fossem assimiladas pela aculturação social e a apropriação cultural fosse naturalizada, práticas nada inocentes que não dizem respeito apenas à escolhas individuais. Curiosamente ou nem tanto, é justamente nessa parte da cidade que está uma das mais profundas raízes do rock com o Chicago Blues, trazido do sul e mais tarde apropriado por músicos ingleses como Beatles e Rolling Stones.

A Metrópole Negra, também chamada de Bronzeville, florescia em meio à violência racial que a definiu. Em 1919, quando a população negra somava aproximadamente 100.000 pessoas, a cidade de Chicago foi definitivamente marcada pelo assassinato de Eugene Williams. Um jovem que foi apedrejado por ter ido à praia e nadado sem querer em uma área frequentada por pessoas brancas.

Crianças brancas com pedras e tijolos perseguindo um homem negro em CHicago em 1919.
Credito – Jun Fujita/Chicago History Museum, via Getty Images

George Stauber foi o banhista branco de 24 anos que jogou a primeira pedra. Foi reportado que a polícia se recusou a prender o assassino. Algo que é muito dolorido de se escrever no mesmo dia em que recebemos a notícia de que, nos Estados Unidos, Michael Brelo foi absolvido pelo assassinato de Timothy Russell e Malissa Williams. Assim como Chicago permenaceu em guerra racial por alguns dias, o mesmo é esperado agora em Cleveland…

A Metrópole Negra e suas oportunidades improváveis

Mas o que foi pensado como um gueto, acabou se transformando em outra coisa. O pesadelo urbano que representa o Cabrini Green tem uma origem que pode ser comparada à de Candyman que um dia foi humano, de carne e osso mas se torna, ou melhor, passa a ser visto como um monstro. Poderia ter dado certo, mas deu muito errado. Não por uma falha moral da personagem, mas como resultado de uma política de habitação secularmente racista.

Essa guerra racial moldou a cidade que se reafirmou como completamente segregada como vemos nas imagens de Edwin Rosskam, feitas em 1941. Uma cidade em que nenhuma política habitacional foi pensada. Uma cidade em que a ordem seria estabelecida pela limpeza étnica de pessoas negras, marcada pela violência racial e ao mesmo tempo, pela capacidade de uma comunidade de resistir e criar oportunidades onde alguns considerariam improvável.

A 35th Street concentrou negócios negros. É nesse universo que temos a imprensa negra com iniciativas que sobreviveram ao tempo como Chicago Whip, Chicago Bee, Broad Axe, the Half Century Magazine e o Chicago Defender, que ainda em atividade. o Illinois Writer’s Project reporta que havia mais de 30 jornais negros em atividade. Tamanha era sua importância que se reuniram em torno da Associated Negro Press (ANP), fundada por Claude Barnett.

Se havia imprensa negra, haviam muitos problemas a reportar.

Uma cidade em que convênios e regulamentações encurralaram a população negra, mesmo após terem sido práticas proibidas. “Na época em que os convênios restritivos foram finalmente declarados inconstitntutiolais pela Suprema Corte em 1948, Bronzeville estava explodindo em suas bordas com uma densidade populacional substancialmente maior do que o resto da cidade.”

Os corretores imobiliários brancos da cidade ajudaram a criar novas táticas de segregação. Em 1927, o Chicago Real Estate Board havia esboçado sua própria versão de um pacto restritivo, um contrato vinculante proibindo os proprietários brancos de vender propriedades para não-brancos. Em uma década, esses contratos governaram três quartos das propriedades residenciais de Chicago. Defendidos rotineiramente por juízes municipais, os pactos restritivos tiveram força de lei até serem anulados pela Suprema Corte em 1948.

Uma mesma solução para o mesmo problema, só muda o nome.

Resumidamente, podemos nos aproximar da história do planejamento das cidades ocidental branco como a busca por resolver um único problema – a expulsão de populações indejesáveis. Aconteceu aqui e aconteceu também por lá, na diáspora negra afro norte americana. É que vemos se nos debruçarmos sobre a linha do tempo do Cabrini Green.

A gentrificação que aconteceu no final do século XIX deu origem à Metrópole Negra que, por falta de políticas públicas, se deteriora para ser regentrificada. E as pessoas que ali moravam são apagadas da história. Não sem resistência. Há uma série de páginas que se propõe a contar quem realmente morava ali. E nenhum deles era o Candyman que, se existisse, não seria um produto espontâneo do meio mas resultado do descaso das autoridades.

Os edifícios Cabrini em Cabrini Green, Chicago, por pokerpete.

A construção do conjunto habitacional que chegou a abrigar 15 mil pessoas se estende entre 1942 e 1958. Teve como objetivo remover a população que havia sido alijada para essa parte da cidade em função de medidas racistas como “venda de contratos, discriminação e controle de hipotecas” que “mantiveram a exclusão racial em grande parte de Chicago, muito depois da aprovação das leis nacionais de direitos civis na década de 1960”.

Ao mesmo tempo, as narrativas de violência, assim como acontece por aqui, foram construídas em torno do completo. Havia problemas, obviamente. Porém, assim como acontece no filme, foram amalgamados em uma monstruosidade que não condizia com a realidade. “Cabrini-Green não era o bairro mais pobre nem o mais criminoso. Mas sua proximidade com as áreas mais ricas da cidade o tornava um alvo não apenas para a polícia, mas também para as notícias locais e nacionais.”, aponta Andrew Chow.

Há duas décadas, 22 unidades habitacionais foram demolidas e todos seus habitantes removidos num processo de gentrificação, ou melhor, violência urbana. Voltando ao filme, podemos entender o contato entre Candyman e Helen como metáforas para duas cidades que não deveriam entrar em contato. Uma delas deveria desaparecer. Quem sabe as duas, uma vez que tendo entrado em contato com um monstro preto, a mulher ou a cidade branca se contamina e se torna inviável por ter se tornado sua vítima.

No final dessa estória, o Cabrini Green é demolido para dar lugar à cidade representada e desejada por Helen. A personagem também representa a vontade do diretor em filmar naquela área que é idealizada como um mal absoluto, como Candyman. Quase como se personagem e autor quisessem ir até lá estar suas teses de brancos salvadores para depois entender que se tornaram vítimas de uma maldição.

“Nas últimas duas décadas, enquanto o Cabrini-Green era reconstruído com condomínios de luxo, novos prédios escolares, parques embelezados e lojas e restaurantes de luxo, os valores das propriedades aumentaram exponencialmente, assim como os impostos. O distrito TIF gerou mais de $ 350 milhões desde que foi estabelecido em 1997, tornando-se o quarto maior em receita entre os quase 140 distritos da cidade.”, reporta Alejandra Cancino.

CHICAGO – 12 DE JANEIRO: Os residentes passam por um dos poucos edifícios de habitação pública remanescentes da Chicago Housing Authority Cabrini-Green em 12 de janeiro de 2005 em Chicago, Illinois. Os prédios degradados e dilapidados ficam em uma propriedade imobiliária de primeira linha que a cidade de Chicago deseja demolir e reconstruir. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento Cabrini-Green do CHA tinha 22 prédios altos em 70 acres de terreno com 3.500 unidades de apartamentos que abrigavam aproximadamente 15.000 residentes. (Foto de Tim Boyle / Getty Images)

“Isso serve como um símbolo para a violência racial do que aconteceu com os afro-americanos em cidades dos Estados Unidos, onde suas casas e empresas foram demolidas, seja por negligência do governo ou porque o governo queria construir uma rodovia, e Acontece que os projetos de habitação pública estavam no caminho. E você sabe, não queremos romantizar demais projetos de habitação pública como o Cabrini-Green. Definitivamente tinha seus problemas. Mas este filme, definitivamente convoca o espírito de, você sabe, o que eu chamo não de uma casa mal-assombrada, mas de uma política habitacional mal-assombrada, na qual os negros foram agrupados nesses projetos de habitação pública. E então, você sabe, desapareceu e foi apagado de lá quando a cidade e o governo federal acreditaram que os projetos de habitação pública haviam sobrevivido ao seu propósito”, afirma Bretin Mock.

Nos resta saber, agora, qual é o olhar de Nia da Costa sobre essas questões. O filme tem sido aclamado pela crítica especializada que se propóe a um trabalho sério. As análises que pude ler até aqui também tem olhado para a refilmagem de Candyman como uma oportunidade de olhar para um dos maiores monstros que nós pessoas pretas temos de enfrentar – políticas urbanas racistas e falta de moradia.

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