Esse branco sou eu? Banzo, Esquecimento e Memória.

O assunto nessa conversa é o “nosso” negro interno, o absurdo racista, o esquecimento e a recordação quando há mais olhos que sono.
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Tem um monstro no meu armário
Alguém debaixo da minha cama
O vento está batendo na minha janela
Eu mataria mas já está morto

Eu costumava pensar como parecia familiar
Então eu percebi que era um espelho
Oh e agora é fácil de ver
O tempo todo o monstro era eu 

The boogie monster, Gnarls Barkley

UM ÚNICO PROBLEMA

O assunto nessa conversa é o “nosso” negro interno, o absurdo racista, o esquecimento e a recordação quando há mais olhos que sono. Desde que nós que aqui estamos todos os dias revivemos também a morte – de bala, de fome, de abandono, de asfixia, de banzo. Fazendo com que cotidiana e inexoravelmente tenhamos de olhar na bolinha do olho do único problema filosófico verdadeiramente sério do qual falou Camus, a ideia de tirar a própria vida.

Pra isso vamos ao cinema.

ESSE BRANCO SOU EU?

Veja o caso da personagem de Forrest Whitaker em O mordomo, filme de Lee Daniels, 2013. Cecil Gaines caminha pela Casa Branca servindo bebidas como se os brancos não estivessem ali. Exibe dia após dia a mesma faceta palatável e ao mesmo tempo impenetrável para a branquitude. Quando está com os seus lembra. Bipartido, algo mais profundo do que apenas ter uma aparência conciliadora, segue trabalhando pela força dos acontecimentos.

O esquecimento e a lembrança como processo contínuo de sobrevivência faz com que seu corpo performe arquiteturas completamente distintas. Quando Gaines está com os seus, saem de cena as luvas impecavelmente brancas que não deixam que sua pele negra toque a louça, preservando assim a fronteira entre pretos e brancos. A camaradagem não mais se perfila para ser inspecionada pelo presidente.

Numa tensão quase palpável, em algumas ocasiões Gaines reúne as facetas de si mesmo, quando responde à absurdidade do rascimo. Foi exatamente isso que Peele em Corra! quando a Georgina de Betty Gabriel chora. Nesse breve momento, suas lágrimas caem enquanto sorri. Uma experiência que não seria outra além de dolorosa e nós a compartilhamos em agonia. Afinal a branquitude é tão perigosa e insidiosa como uma solitária.

Essa é a questão que pressuponho ter sido circunscrita por Beatriz Nascimento em Meu Negro Interno, textão publicado no jornal Village Voice na década de 1980 e republicado recentemente em Quilombola e IntelectualProfundamente consciente e conciliada com o aspecto trágico da vida humana, a pensadora investiga a hipótese colocada por um amigo sobre até que ponto não havia internalizado a discriminação da qual se queixava?

Em outras palavras, o branco que me machuca por dentro sou eu? Existiria realmente um “negro dentro de mim” maior, estupendamente maior que o de fora, que nega a si mesmo o “direito” de ingressar na “democracia racial brasileira”? Porque ele sempre se mostra a mim ferido, açoitado, roto, tonto de banzo, febril, indomado, me puxando para longe de volta no tempo da história”?

O ESQUECIMENTO

O meu exercício aqui é tentar caminhar por sobre as obras que revisito e sobretudo as pegadas deixadas por Beatriz Nascimento, neste texto que infelizmente não encontrei online. O que acontece quando nos deparamos com o absurdo racista que procura nos transformar em baratas, metáforas para a construção de nossa desumanidade. Vejo o banzo como resposta à pergunta se mesmo assim vale a pena continuar vivendo.

E assim, quando pretendo explicar o que se produziu em quatro séculos de repressão, de ausência de ser, vejo somente uma imensa amnésia coletiva que nos faz sofrer brutalmente. Esta amnésia coletiva começou a surgir a partir de um porão de um navio negreiro qualquer, e ao nível social, sabemos ou intuímos o que ela produziu. A batalha que travamos todos os dias por dentro, entre o esquecer e lembrar do qual somos feitos.

Para alguém que faça parte de outro grupo racial que não o negro, como acontece em O duplo, isto poderia ser uma tarefa pesada (e dolorida), mas não vital. Para um negro, que não consegue evitar de encontrar a si mesmo nas ruas da cidade como Beatriz Nascimento, ela é vital e aterradora. É como se de repente você estivesse nos anos 1600, cortando cana num canavial, os pés presos a correntes.

Tomando inescrupulosamente como cobaia eu mesma, isto é, partindo da minha experiência, me sinto inclinada a falar sobre o ferro quente com o qual a branquitude marcou minha pele aos quatro anos de idade. Aquela cusparada bem no centro da minha testa. Afinal é preciso que sejamos interrompidos antes que possamos aprender a amaldiçoar, com as palavras criadas por eles. Até mesmo uma criança branca sabe disso. 

A amnésia e a lembrança não sejam apenas nossas afinal, o que explica o tamanho esforço empreendido pela branquitude para que nosso negro interior também seja ferido, açoitado, roto, tonto de banzo, febril, indomado, nos puxando para longe de volta no tempo da história, definindo continuamente assim quais são nossos lugares. Para que sigamos ausentes de nós mesmos, deslocados.

Sobre isso, ouso discordar de Peele sobre sua própria obra, na esperança de que isso não seja uma bravata inglória. Se em Corra (2017) o conflito era com a branquitude, assim como possivelmente acontecerá em Candyman, em Nós (2019) as existências negras bipartidas, deslocadas de si mesmas e ausentes, disputam a narrativa. Um cenário que tira a branquitude da cena e nos coloca em posição de ao menos imaginar como poderiam ser nossos negros interiores. 

A RECORDAÇÃO

Eu acredito que eles descobriram como fazer uma cópia do corpo, mas não da alma. A alma continua sendo uma, compartilhada por duas. Eles criaram os Ancorados para poder controlar os que estão acima. Como fantoches. Mas eles falharam e abandonaram os Ancorados. Por gerações, os Ancorados continuaram sem direção. Todos enlouqueceram aqui. E então, havia nós. É o que diz Adelaide.

E nós, mais dia ou menos dia, vamos lembrar como aconteceu com a personagem ancorada ou duplicada, interpretada por Lupita Nyong’o. Subvertendo também a ordem, na medida em que são a oposição da casa-grande, constituindo-se um pólo ameaçador., como disse Conceição Evaristo. Somos suspeitos. É fundamental que a branquitude não apenas estabeleça esse conflito, circunscreva a raiva dentro de cada uma de nós, dirigida à nós mesmas. Essa é a finalidade da pergunta do amigo de Nascimento. Afinal, o que significaria a aliança entre a Vermelha e Adelaide?

Talvez seja disso que se trata o que falou Viviane Gomes ao afirmar que não podemos fazer por menos que retrata a necessidade de ruptura das correntes com que nos anconram à branquitude. Um chamado à Memória, aquela que se constrapõe às violências que dirigimos à nós mesmas, quando ancoradas pela branquitude.

Precisamos lembrar que Cecil Gaines e eu filho não são inimigos.

A realidade pode ser compartilhada entre Adelaide e Vermelha.

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