Ninguém de fato acordou de repente e se viu dividido em nervuras arqueadas. Mas a pandemia e o derretimento das instituições políticas trouxe uma concretude a essa imagem. É aquela do absurdo. Alguns acordam baratas. Outros são considerados baratas antes de nascer e por toda a vida, mesmo sem ser.
Pra gente o absurdo não é uma teoria. É todo dia.
A tal ponto que muitos já não sabemos o que é realidade, o que é a morte. A fronteira entre essas duas dimensões já se esgotou para nós. Ouso dizer que um dos últimos degraus rumo ao vazio foi a guerra do Congo, cujas imagens jamais serão esquecidas por aqueles que as viram. O que haveria de mais monstruoso do que precisar tirar a foto das mãos e pés decepados de seus filhos para que o mundo não se esquecesse?
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
— O que aconteceu comigo? — pensou.
Franz Kafka, Metamorfose.
O que mais poderia ser feito de monstruoso, além de repetir à exaustão tais catástrofés por gerações? É assim que sempre olhamos para nossas crianças, com aquela dor indizível por uma culpa que não é nossa. Sobrevivemos enquanto povo é verdade. Mas estamos morrendo como baratas ou moscas, se preferirmos trocar Kafka por Simone.
Hoje entendo os silêncios dos mais velhos quando a gente perguntava, mas o que vocês fizeram a cada vez que nos reafirmaram baratas. A gente guarda as memórias para um dia com muita sorte entregá-las aos mais novos. E precisa fazer esse trabalho, de preparar nossas crianças para a guerra ao mesmo tempo em que buscamos preservar um pouco de sua humanidade.
Tentei me refugir por um breve momento nas folhas de um livro que permaneceu esquecido na minha estante por anos. Suas mais de 1000 páginas não haviam me despertado qualquer interesse genuíno. Mas como a fruta nunca cai longue do pé, as mesmas páginas me obrigaram a não apenas comprá-lo mas como guardar quase intacto. É aquilo, nem sempre a gente guarda os livros para si mesma.