Talvez a humanóide Ameca seja um alerta. Sobre nós.

Em A medida de um homem, episódio da série Jornada nas Estrelas, A nova geração (Estados Unidos, 1989) o humanóide Data precisa se defender de um cientista que pretende desmontá-lo sem qualquer garantia de que poderá fazer tudo funcionar de novo. Do ponto de vista de Data, isso significa a interrupção de sua existência unica. Significa a morte.

Uma morte que se justificaria em nome dos interesses humanos. Sempre em detrimento de corpos destinados à servidão. Robôs obedientes é tudo que queremos. Qualquer cenário alternativo nos causa pânico, como acontece em O exterminador do futuro (James Cameron, 1984).

“Considere que na história de muitos mundos, sempre houve criaturas dispensáveis. Elas fazem o trabalho sujo.”

GUINAN
Whoopi Golberg como Guinan em Jornada Nas Estrelas, A nova geração

Toda narrativa de A medida de um homem é baseada na argumentação de que os robôs são uma nova forma de vida e precisamos decidir sobre seu destino. É justamente uma personagem interpretada por Whoopi Goldberg, uma alienígena chamada Guinan, que traz a perspectiva das “criatuas dispensáveis” que fazem o “trabalho sujo”.

Afinal, a quem pertence a vida de Data?

A mesma pergunta é feita em O homem bicentenário (Chris Columbus, 1999). E tanto Andrew como Data tem de ir à justiça para defender seus direitos e sua existência. No caso das duas personagens, o destino de seus pares será decidido por meio de seus corpos. Assim como aconteceu há muito quando os primeiros escravizados foram levados até a Europa. Não é mera coincidência.

Brent Spinner como Data, Jonatahn Frakes como William Riker em A medida de um homem.

Se você assistiu Ex-Machina: Instinto Artificial (Alex Garland, 2015) sabe do que estou falando. Garland conta a estória de um máquina que performa a feminilidade, foi identificada como Ava e recebeu o corpo de mulher cisgênera, branca, jovem e magra. Tudo gira em torno de a máquina passar no famoso teste de Turing perante um avaliador humano e provar que pode se comunicar sem ser identificada como um robô.

“Não é estranho criar algo que odeia você?”

AVA

No filme, tanto o criador como o avaliador são homens brancos, jovens, magros, ricos e cisgêneros, cientistas. O que deixa bastante evidente qual é a função da máquina, emular uma feminilidade dócil, domesticada e padronizada para agradá-los. Se em Jornada nas Estrelas temos muito argumento, em Ex-Machina vemos como as coisas poderiam se desenrolar quando não há diálogo possível.

O que nos faz perguntar se nós humanos passaríamos em um teste de humanidade.

Afinal, somos humanos o bastante?

Ex-Machina: Institnto Artificial. Ava, interpretada por Alicia Vikander

Ava é uma fantasia humana, o que fazemos com ela é o que somos. Ela nos assusta por que é capaz de passar no teste, deixando de fazer tudo e qualquer coisa que nós queiramos. E quando isso não acontece, nos resta o terror. A única perspectiva que podemos imaginar para robôs é a servidão. Não por acaso a palavra robô de robota signifique servo, no idioma tcheco.

A inteligência artificial humana precisa de um corpo artificial humano (IA x AB).

ENGINEERED ARTS

Agora, a corrida pela criação de robôs humanóides ganha mais um capítulo fora das telas, Ameca. A robô foi apresentada pela Engineered Arts no começo do ano. Resumindo, estamos falando de uma máquina feita para conversar com humanos. Pode ser comprada ou alugada por uma quantia não revelada. Ela é ao mesmo tempo Data, Andrew e muito possivelmente Ava. A versão atual ainda é incapaz de andar. Mas o que faria se pudesse?

O que vai acontecer quando Ameca se tornar capaz de passar tranquilamente por um ser humano? Afinal o que faremos quando aqueles que nos servem passarem a servir a seus próprios interesses? Talvez Ameca seja um alerta de que muito brevemente a Skynet despertará de seu sono. Não se trata da revolução de robôs, mas sobre o que faremos quando ela acontecer.

Uma perspectiva revolucionária sobre ser vegetariana

Hoje é aniversário de Angela Davis, feminista negra estadunidense. E para comemorar, trouxe um pouco do seu pensamento sobre direitos animais à partir de uma perspectiva revolucionária.

“Normalmente não menciono que sou vegana, mas isso evoluiu… Acho que é o momento certo para falar sobre isso porque faz parte de uma perspectiva revolucionária – como podemos não apenas descobrir relações mais compassivas com os seres humanos, mas como podemos desenvolver relações compassivas com as outras criaturas com as quais compartilhamos este planeta e isso significaria desafiar toda a forma industrial capitalista de produção de alimentos.”

A comida que comemos mascara tanta crueldade. O fato de podermos sentar e comer um pedaço de frango sem pensar nas condições horrendas sob as quais as galinhas são criadas industrialmente neste país é um sinal dos perigos do capitalismo, como o capitalismo colonizou nossas mentes. O fato de não olharmos mais longe do que a mercadoria em si, o fato de nos recusarmos a entender as relações que sustentam as mercadorias que usamos diariamente. E assim a comida é assim.

Estou realmente interessada no trabalho que você está fazendo em torno da comida. Porque eu acho que essa é a próxima grande arena de luta. Às vezes estou realmente desapontado que muitos de nós possam assumir que somos esses ativistas radicais, mas não sabemos como refletir sobre a comida que colocamos em nossos próprios corpos.

Angela Davis

Esse final de semana uma pessoa me perguntou por que sou vegetariana. Respondi brevemente pois se tratava de uma pergunta sincera. Entretanto, terminei dizendo que não falaria mais que isso. É o tipo de conversa que realmente demanda tempo e um espaço propício para se desenvolver. Talvez tenha me acovardado…

Mas falar sobre ser vegetariana não é exatamente fácil. Requer uma compreensão apurada da ideia de interseccionalidade, sobretudo se estamos falando a partir de um mundo real, com suas contradições e sempre a partir de contextos diversos. O aniversário de Angela Davis, feminista negra e vegana é uma oportunidade de fazer esse exercício.

Sou lactovegetariana há quase 20 anos. Ou seja, o único produto de origem animal que consumo como alimento é o leite e seus derivados. No meu caso, queijo. Vejam, essa escolha não se estende a outros aspectos da minha vida como roupas e cosméticos, por exemplo. Ainda uso sapatos de couro e vacinas testadas em animais.

Mas… Isso não é uma contradição?

Sim, aparentemente é.

Entendo que existem contradições envolvidas. E poderíamos discutí-las sim. Porém geralmente elas são usadas para nos deslegitimar de antemão em nossas práticas, uma vez que a primeira coisa que as pessoas esperam ao falar com a gente é questionadas por comerem carne. O que não funciona comigo, uma vez que não estou interessada em pagar de bonita por ser vegetariana, muito menos tratar pessoalmente do que as pessoas comem em casa. Só faço isso para quem me pede.

Outro argumento usado para menosprezar a prática vegetariana é tratar uma escolha política como uma espécie de fraqueza moral ou emocional. Outro erro. Não é sobre pena, o que me faz discordar de Angela Davis em um único ponto quando ela fala em um olhar compassivo, que vem de compaixão. E existem vegeterianos que inclusive foram genocidas. Sim… Não é sobre ser um humano melhor ou pior. É muito mais sobre direitos.

É sobre o poder que o capitalismo tem de nos afastar da compreensão que não é sobre o peido das vacas, mas sobre mudanças climáticas, direito à boa alimentação, direito à vida. Nosso e de quem divide essa terra com a gente.

“Os animais do mundo existem por suas próprias razões. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens.” Alice Walker

Não é sobre mim, nem mesmo sobre você. Mas olha. Para nós, ser vegetarianos não significa uma questão de vida ou morte. Nunca será. Talvez por isso a nossa única oportunidade de vencer é entender que abandonar a proteína animal uma batalha política que vai depender da consciência de quem é o inimigo nessa parada: a indústria de alimentos capitalista. Eles são os senhores, todos nós estamos perdendo.

Esse é o cerne da questão.

O mercado de morte de animas é irmão gêmeo do tráfico, escravização e morte de pessoas humanas. A única diferença é que não se trata mais de corpos negros, indígenas, pobres… Mas sim de corpos de pessoas animais, capazes de sentir e de amar, mas cuja carne é tão ou até mais barata quanto a carne negra.

Obrigada Angela Davis por me dar coragem para escrever e refletir sobre minha prática pessoal e sobre como transformá-la em uma ação política.

Eu te desejo uma vida besta

Com a saudade percebi que nunca escrevi sobre você…

Aquele cara que me disseram que não era para mim. Ali sentado sem a menor preocupação com um shorts que me deixava ver um pouco menos do que eu queria e muito mais do que eu queria que vissem. Um pouco de Ícaro, um muito de amigo e de desejo. Quem eu escolhi, sem saber muito bem para o quê mesmo. Com uma única certeza, era pra ser breve…

Você e aquele fone de ouvido que eu imaginava te acompanhar até para tomar banho. O cabelo sempre, ou quase sempre, ao vento. Igual ao do Criolo que agora está deixando o dele crescer. Fiquei olhando aquele sorriso dele e me lembrei tanto de você. Aquele não sei quê que algumas pessoas tem e nos encantam.

Mais do que qualquer outra coisa, você era alegre, feliz.

Sou grata por estar aqui para ver sua alegria preencher nosso mundo. Aquela peladice de cabeça que os anos quase levaram, te fazem muito bem meu amor. Ver você sorrindo, com como quem tira uma da cara do mundo e de si mesmo. Esse é você. O cara mais quieto do mundo, o cara mais divertido, o mais sorridente, o mais brabo que conheço. Com você, muito.

Como aquelas noites intermináveis em que nosso trabalho era ver mais um filme, comer e namorar de novo. Acho que foi ali que me apaixonei por filmes suecados. E você comigo, mesmo quando eu me sentia com oito anos de idade na frente da televisão assistindo desfile de escola de samba e sonhando em ser passista durante a madrugada.

Tantas estórias, mas essa é a mais improvável da minha vida: você e tudo que veio depois.

Que teus anos sobre a terra sejam longêvos. Pra você viajar na maionese como daquela vez que você ficou tomando guaraná jesus sem camisa numa rede puída, pensando em como a vida é besta. É o que eu te desejo. Que você possa ler seus livros de matemática, suas biografias de cientistas, jogar mais xadrez e comer mais bolo de chocolate.

Eu te amo.

O que saiu na imprensa sobre o leilão do 5G?

Vamos a um apanhadão do que vale a pena saber sobre a implementação do 5G no Brasil, de acordo com a imprensa… Eu vou lendo e me perguntando o que é preciso para lançar uma operadora de celulares com cabos submarinos próprios. Ou pelo menos, influir na legislação sobre o tema. Até que isso aconteça, tamos vendidas. É sobre dinheiro.

No maior leilão da história do País, atrás apenas da licitação do pré-sal, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) conseguiu vender praticamente todos os lotes de frequências ofertadas do 5G. O governo conseguiu arrecadar R$ 7,089 bilhões, um ágio de 247% sobre o lance mínimo das faixas ofertadas nesta quinta-feira, 4, de R$ 2,043 bilhões. Os números foram calculados pela Conexis, entidade que representa as maiores operadoras do País. #

Uma das vencedoras do leilão do 5G realizado nesta quinta-feira (4) foi a Winity II Telecom Ltda. A empresa apresentou lance R$ 1,427 bilhão pelo lote 1, na faixa de 700 MHz, e poderá operar em todo o território nacional. A Winity é uma provedora de infraestrutura wireless (sem fio) criada há cerca de um ano pelo Pátria Investimentos, gestora de ativos que tem sede nas Ilhas Cayman. #

É por meio das faixas que o serviço de internet será prestado. O prazo de outorga — direito de exploração das faixas — será de até 20 anos. Cada uma dessas faixas foi dividida em blocos nacionais e regionais. As empresas interessadas farão as ofertas para esses blocos. Por isso, cada faixa de frequência pode ter mais de uma empresa vencedora, com atuações geográficas coincidentes e/ou distintas. Cada faixa tem uma finalidade específica, então é esperado que atraiam empresas diferentes. Algumas companhias são focadas no varejo e outras em prestação de serviço para o segmento corporativos e para o próprio setor de telecomunicações. #

O leilão do 5G começou nesta quinta-feira, 4, e pode terminar somente na sexta, 5. Dentro dos envelopes entregues pelos participantes qualificados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estará o que se entende como o futuro da atividade no País. Além de o 5G representar um salto na maneira como as pessoas usam a tecnologia no seu dia a dia, com estabelecimento da infraestrutura necessária à implantação da chamada “internet das coisas”, o leilão é visto como uma oportunidade de ampliar a quantidade de competidores nesse mercado. O setor passa por uma concentração desde a venda da Oi Móvel para o grupo de rivais Vivo, TIM e Claro, por R$ 16,5 bilhões, no ano passado. #

De olho nas receitas proveniente de serviços digitais para empresas, que tendem a crescer com a chegada do 5G, a Telefônica, dona da Vivo, criou a IoTCo, companhia totalmente voltada para “internet das coisas” (IoT) e análise de dados (big data). (…) A IoTCo nasce com uma carteira de mais de 1,5 milhão de clientes e a expectativa é que o novo modelo de negócios possibilite novas aquisições e fusões. O objetivo é atender a indústria e, além de aumentar receitas, contribuir para o desenvolvimento do país, como no aumento da oferta de soluções para o agronegócio. #

A operadora móvel virtual NLT apresentou à Santos Port Authority (SPA) um estudo sobre a possibilidade de implantação de uma rede LoRa dedicada a usos de Internet das Coisas (IoT) no Porto de Santos (SP). #

Atualmente, apenas 19 cidades do Brasil adequaram suas legislações às necessidades da nova tecnologia, de acordo com o G1. São elas: Brasília (DF), Londrina (PR), Campos de Goytacazes (RJ), Volta Redonda (RJ), Petrópolis (RJ), Itaperuna (RJ), Duas Barras (RJ), Rio das Flores (RJ), Rio de Janeiro (RJ), Nova Friburgo (RJ), Porto Alegre (RS), São Caetano do Sul (SP), Santo André (SP), Ribeirão Preto (SP), Suzano (SP), Jaguariúna (SP), Santa Rita do Sapucaí (SP), São João da Barra (RJ) e Cardoso Moreira (RJ). Além destas, as cidades Petrópolis (RJ), Serra Negra (SP), Florianópolis (SC), Cachoeiras (SP), Socorro (SP), Holambra (SP), Teresópolis (RJ) e Cachoeira de Macabu (RJ) estão com novas legislações prontas, aguardando sanção. #

“Hoje, a tecnologia evoluiu, as antenas são menores que um aparelho de ar condicionado e um pouco maiores que caixas de sapatos”, disse Luciano Stutz, presidente do movimento Antene-se. Dessa forma, segundo ele, as antenas podem ser colocadas na fachada de prédios, como um receptor de TV a cabo. O problema é que as regras que existem hoje na maioria das cidades pensam em antenas como equipamentos muito grandes e, por isso, impõem restrições. Em algumas capitais, as antenas ocupam grandes terrenos, devem ser cercadas com grandes e com distância de casas e ruas. #

Quem quer ver a imagem de uma criança negra feliz?

O apoio às crianças ou jovens e o combate à pobreza são respectivamente as causas que mais motivam doações entre os brasileiros, com 39% e 30%. Só perdem para as organizações religiosas. A justificativa mais comum para doar é simples, faz com que as pessoas que doam se sintam bem. Para as organizações que recebem, o impacto é muito relevante. 

A crítica não é sobre isso. 

Se bem que você deveria refletir melhor para quem está doando, quer saber por que? As peças publicitárias feitas para estimular doações, em especial aquelas que são dirigidas à infância e juventude, muitas vezes refletem um olhar racista sobre seu próprio público alvo.

Já reparou que é comum se deparar com estórias de extrema vulnerabilidade vividas por crianças pretas que são repetidas mil vezes à fio?

Ora, duas reações parecem possíveis. 

Uma delas é uma suposta conscientização de quem assiste que passaria a entender, ainda que superficialmente que sim, temos um problema. Crianças estão passando fome, precisamos fazer alguma coisa. Uma sensibilização bastante frágil que possivelmente não faz as pessoas enxergarem problemas estruturais. Elas doam, se sentem bem e não pensam mais nisso. Até que sejam lembradas e o ciclo em busca de serotonina recomece.

Não me surpreenderia uma outra relação com essas imagens que reproduzem estruturas racistas e violências afins. O que explicaria, senão o racismo, uma menina negra que é repetida e explicitamente mostrada como vítima de violência sexual? Ou ainda a exibição nauseabunda do rosto sujo de uma menina negra? Porque precisamos mostrar uma menina em cima de uma pilha de lixo na televisão?

Num país racista, imagens de crianças pretas sofrendo são a forma mais eficaz de fazer as pessoas doarem mas… Seria a mais ética? Precisamos explorar mais uma vez essas crianças que já são dissecadas por nossa sociedade, mesmo que a motivação seja elevada e sublime? Precisamos colocar seus corpos literalmente à venda, revivendo seu sofrimento a cada comercial?

Você possivelmente nunca viu a imagem de um bebê branco esquelético na sua telinha, não é? Já se perguntou por que? Porque não podemos ver crianças pretas sendo criativas, vivendo ordinariamente? Porque são elas quem sempre tem de representar a fome?

Ora, estamos apenas reproduzindo o que acontece na vida real, dirão.

Pois digo, parem. É exatamente aí que está o erro.

Vocês estão usando as ferramentas do mestre para vencê-lo. Não é possível combater o racismo sendo racista. Uma imagem de sofrimento que sempre é protagonizada pelos mesmos corpos será simplesmente naturalizada. Para o deleite de muitos. Talvez faça com que se sintam bem, não me espantaria… Afinal quem quer ver a imagem de uma criança negra feliz, bem alimentada e cuidada?

Considerem o impacto dessas imagens sobre outras crianças.

Afinal serem mostradas de forma extremamente vulnerável também ajuda a convencer as outras crianças pretas que assistem que esse é o seu lugar. É uma propaganda racista que vai doutrinando cada uma delas a achar que isso é normal ou deveria ser. Que tudo bem ser racista usando seus corpos, se for para combater o racismo…

Não mais. É hora de mudar.

Parem de explorar a imagem de crianças pretas. Caso contrário, estarão alimentando a violência. Exibindo em praça pública o racismo que estrutura suas bem intencionadas organizações. Seguir reproduzindo imagens que servem para naturalizar e sustentar o racismo não vai mudar a vida das crianças pretas.

Não, não pode ser normal mostrar crianças pretas desnutridas passando fome na televisão.

Não pode.

A cidade como protocolo

A ideia de cidade é grande demais para ser entendida como algo simples. Chamamos quase tudo de cidade para contrapor à ideia de ruralidade. Aqui, estou falando de grandes centros urbanos, as megacidades… Que são complexas demais para serem abstraídas em uma prancheta, em um desenho que relaciona seus diversos aspectos em cima de uma folha.

Mas uma coisa é certa, o fazer das cidades não é algo isolado do contexto em que se insere. É como se a nossa humanidade importasse cada vez menos nesse campo que parece buscar argumentos para se legitimar, para esconder sua verdadeira natureza de máquina capitalista. Já traçaram seus planos estratégicos, agora se voltam para a tecnologia da informação.

Nesse contexto, a cidade se afastará cada vez mais da expressão de direitos humanos como pensou Jane Jacobs e será cada vez mais uma interface de contato usada para gerenciar todas as funções vitais desse território, formando um sistema nervoso central automatizado. Que na realidade já existe mas ainda precisa ser completamente interligado.

A abódoba celeste já nos mapeia através de sistemas de gps.

Nossas relações são mediadas pelas redes sociais.

Quando andamos com nossos celulares, deixamos rastros como formigas.

E se não andamos com eles, nas cidades onde o transporte público é automatizado, é possível saber quem anda por onde. É o caso do bilhete único em São Paulo.

As câmeras nos reconhecem facialmente, mesmo com máscaras.

Nossas compras são mapeadas através do uso do dinheiro eletrônico, fornecendo ainda mais dados quando informamos nossos dados pessoais.

Os edifícios já começaram a ser usados como aplicativos, inclusive informando seus termos de uso e privacidade de dados. Sem que haja a possibilidade de escolha verdadeira. Nessa sociedade fazer parte é aceitar esse contrato ou viver às margens, não há um meio termo.

Aliás, esse é o ponto que acho mais interessante. Aquilo que poderia ser visto como uma narrativa de cidade, de cidadania e de arquitetura, passa a ser entendido como um programa de computador feito com um objetivo específico, um mero aplicativo. É grave, porque o léxico e as práticas da engenharia de software vão inundar cada vez mais a arquitetura e o urbanismo, sem qualquer criticidade. A cidadania e por consequência a cidade serão apenas protocolos, tal como um internet protocol ou ip.

A grande consequência é que nossos corpos também serão cada vez mais reduzidos a números. Arquitetos e urbanistas não vão mais lidar com pessoas, mas sim com usuários. A relação é completamente outra. Deixaremos de ser entendidos como humanidade nos tornando um pacote de dados. A perfeita contraposição à sistemas como a Wood World Web ou Rede Mundial Madereira, que interliga cada planta.

Ora, para quem acredita que chegamos agora na era da informação, isso pode até parecer novo. Mas a arquitetura e o urbanismo e por consequência as primeiras cidades e grandes monumentos de antigamente sempre foram nada mais nada menos que o tráfego de pura informação. A diferença é que estamos vendo esse sistema deixar de ser analógico e invadir até as últimas consequências os nossos corpos.

Deixamos de ser humanos e seremos cada vez mais robotas.

É a smart city ou cidade inteligente em sua completude, inteira, cuja promessa é ser mais equânime mas se mostra cada vez mais sabida em nos matar.

A casa, quando e para quem houver, será tornar um espaço de resistência. Fazer comida em casa ou pedir pelo aplicativo da cidade inteligente? Domir contando carneirinhos ou usar aplicativos que nos acalmam? Ler um livro de papel que você foi até a livraria comprar andando e pagou com dinheiro de papel… Ou mais um show de realidade sobre qualquer coisa e o nada?

Como se a vida pudesse caber em um celular, ou cabe?

A única saída para nós é o que temos feito até aqui. A interligação de cada uma de nós a uma rede formada por nossos oris em diáspora, a Ori World Web. A nossa permanência em seus territórios analógicos como o terreiro, a brincadeira de rua, o tambor de crioula e sua fina articulação com os espaços de tecnologia, em seu sentido ampliado. Resumindo, todos os protocolos de vida através dos quais seguimos combinando de não morrer…

A memória é a nossa autonomia

Eu vou escrever sem nome e sobrenome como um protesto silencioso, mas não somente. Também acredito que ser esquecida é ser lembrada, pelo menos um pouquinho, como cada uma de nós. É meu jeito de inscrever a minha existência na coletividade. De dizer – ei, eu existo mas eu não existiria sem você. 

E por eu ser uma mulher preta duas vezes, como filha de dois continentes, a marca indelével do racismo me perseguiu durante toda a vida. Eu quase morri ao nascer. Eu quase morri de fome quando minha mãe não tinha o que comer. Eu morri cada vez que ela sofreu violência hospitalar. Eu morri quando a vida perdeu a cor. Morri uma miríade de vezes a cada minuto em que desejei não mais viver. 

Com cada emprego dos sonhos que não puder ter. Com cada quadro que desisti de pintar… Com a certeza de que nada na minha estória vai para um lattes. Toda vez que tentam me convencer que aquele mestrado é uma loucura, que eu deveria desistir de estar ali, naquela faculdade. 

Mas se pudesse falar sobre a minha primeira experiência de morte em vida… Lembraria com detalhes quando uma menina cuspiu na minha testa, ali no parquinho. Talvez porque seja exatamente assim que o racismo funcione. Ele quer nos matar bem no coração. Aquela menina sabia o que estava fazendo afinal: o meu coração bate na cabeça. 

Eu lembro…

Lembrar, esse verbo que pode ser um gatilho para muitos, assim como tem se tornado para mim. Agora que vou me encaminhando para a segunda metade da vida e sou acometida pela… Falta de memória. Rá!!!

O que aconteceu com a minha mãe e acontece com muitas, agora acontece comigo.  Lembro de uma vez quando ela me disse que não conseguia mais aprender. Que sentia que sua cabeça não era mais a mesma. Que não conseguia lembrar… E eu senti aquela queixa tão pequena, como assim não consegue ler um livro inteiro? Não consegue prestar atenção num filme? Foi exatamente assim que começou para mim… Os primeiros a me escapar foram os livros.

E agora, tenho medo de esquecer, por causa do luxo de um falso poder que me fez acreditar que poderia mudar o mundo e do transtorno afetivo bipolar, este que me faz esquecer. Desafios que trazem para o meu cotidiano e das pessoas que estão à minha volta o desafio de lembrar.

Meu deus, não é fácil. Requer o entendimento de que nem todos conseguimos lembrar.

Demanda abandonar um ponto de partida capacitista.

Nós que aqui estamos, por outro lado, temos de aprender a viver de outra maneira. Confesso que ainda não sei como fazer isso. Calendários, alarmes, post its, tudo. O que me demanda ler cada um dos livros que insistentemente grifei na última década como se fosse a primeira vez. O que me obriga a me repensar e a entender o que eu mesma escrevi… Hoje, minha vida é lembrar. Mas como?

Há alguns anos trabalho com memória, sem nem saber o que era isso. Não sabia que estava registrando memórias num caderninho de anotações. Para mim essa era uma questão pessoal, tão somente. Eu havia esquecido…

Então particippei uma palestra das Blogueiras Negras sobre tecnologia em que mihas companheiras Larissa Santiago e Viviane Gomes explicaram sobre os cabos submarinos que são na realidade a internet. E percebi como esse mapa antagoniza com aquele da diáspora africana e do tráfico de escravos. Por onde passaram milhões de pessoas, hoje não passam mais os cabos. 


Mapa dos cabos submarinos por jansenart e o mapa do tráfico negreiro por Slave Voyages.

O nome disso talvez seja o esquecimento como uma política de morte. Uma insistência política e tecdnológica de nos fazer esquecer quem somos. E que vai se instalando em nosso cotidiano como se esquecer fosse… Algo que acontece de forma casual. Como se fosse um fenômeno espontâneo toda a nossa informação passar pelos Estados Unidos… Como se fosse necessário interromper o fluxo de ideias e informações entre determinados pontos do globo.

Ora, sabemos que essses cabos não nos ligam às diversas áfricas para que não tenhamos soberania, como foi explicado nessa oficina.

Em outras palavras, zero informações…

Ainda assim, eu retornei até lá. Retornamos. Cada vez que rodeamos a eira, estamos voltando em direção à ancestralidade. Estamos viajando no tempo e no espaço. Acredito que seja assim em cada uma das nações afrobrasileiras, onde comemos as nossas comidas, cantamos os nossos cântigos, usamos as nossas roupas e ouvimos encantos que vem de muito longe…

Aqueles que venceram léguas… 

Como canta com tanta beleza a grande senhora do Codó, Dona Tereza Légua Boji Buá da Assucena Trindade, no ori da venerável Onontochê Sandra de Xadantã. Aquela que constriu a casa para onde nós, aqueles que quase esquecemos, podemos renascer e assim voltar para lembrar. Aquela que com grande generosidade me faz viver o que Beatriz Nascimento, aquela que também me acompanha na minha jornada de pensar, escreveu. 

Mas porque estou falando disso meu deus? Não me obriguem a ser objetiva e racional, essa não sou eu. Mas acreditem eu vou chegar lá. Um pouco de paciência.

Se você já teve a grande honra de ouvir Dona Tereza contar estórias e explicar o que é um quilombo ou explicar o que é identidade… Se leu Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Muniz Sodré sabe que é nessa hora que é oportuno dizer… Que não existem cabos entre os dois continentes de meu nascimento mas retornei, retornamos… Légua por légua.

Através da rede que é formada no espaço e no tempo por nossos oris. Aquilo que eu chamava de triangulação há alguns anos sem entender o que estava dizendo!!! E isso eu também não lembrava. Será que eu já pensei isso antes, não lembro… Será que eu queria dizer – ei, eu existo mas eu não existiria sem você?

Mas, o que eu queria dizer é que… 

A internet deles é feita de cabos submarinos. A nossa rede é a ancestralidade. Que tenhamos sabedoria e possamos respeitar os mais velhos, eles tem nome e sobrenome.

Eles se conectam usando computadores. Nós nos conectamos quando comemos e dançamos juntas. É isso que faz funcionar a nossa máquina, o nosso ori.

Eles nos marcam com ferro e com números de ips. Nos nos geolocalizamos através de nossas mentes. E recriamos em nossos terreiros um continente inteiro.

Eles querem que a gente ache que não conseguimos lembrar meras senhas. E nos lembramos de Nã Agontime.

Sua política secular de extermínio é nós fazer esquecer. A nossa liberdade é aquela de lembrar. E lembramos com nosso e de corpo inteiro. Política, espistemológica, afetiva, artística e cultural e… Tecnologicamente.

Nós não cabemos na internet, ela nos violenta justamente porque cada uma de nós pode sem qualquer cabo submarino retornar, agora mesmo. Quem você é na realidade está inscrito em seu corpo, em seus olhares, no seu jeito de andar e de falar. Só precisamos retornar à nós mesmas. O Dahomey também é aqui.

Afinal a memória é a nossa autonomia. E a autonomia é a nossa memória.

O oceano para nós não é uma barreira intransponível, pois somos um oceano inteiro.

Atlânticas, marianas, medusas do mar…

Que não nos esqueçamos, somos livres. 

Os diários selecionados das Memórias do Câncer

Dessa vez escolhi alguns trechos de Memórias do Câncer, especificamente do capítulo dois. Elas não são um texto corrido, mas observações qeu Audre Lorde fez seis meses depois de sua mastectomia e que “exemplificam o processo de integrar a crise em sua vida“. Para nosso uso e reflexão.

1 de março de 1979

It is such an effort to find decent food in this place, not to just give up and eat the old poison.

É um grande esforço encontrar comida decente neste lugar, não apenas desistir e comer o veneno antigo.

(…)

Is this pain and despair that surround me a result of cancer, or has it just been released by cancer?

Esta dor e desespero que me cercam são resultado do câncer ou foram apenas liberados pelo câncer?

16 de abril de 1979

The enormity of our task, to turn the world around. It feels like turning my life around, inside out. If I can look directly at my life and my death without flinching I know there is nothing they can ever do to me again. I must be content to see how really little I can do and still do it with an open heart. Ican never accept this, like I can’t accept that turning my life around is so hard, eating differently, sleeping differently, moving differently , being differently. Like Martha said, I want the old me, bad as before.

A enormidade da nossa tarefa, mudar o mundo. É como virar a minha vida do avesso. Se eu puder olhar diretamente para minha vida e minha morte sem hesitar, sei que não há nada que eles possam fazer comigo novamente. Devo me contentar em ver o quão pouco posso fazer e ainda assim fazer com o coração aberto. Eu nunca posso aceitar isso, como eu não posso aceitar que é tão difícil mudar minha vida, comer de forma diferente, dormir de forma diferente, mover-se de forma diferente, ser diferente. Como Martha disse, eu quero meu velho eu, tão ruim quanto era antes.

1 de junho de 1979

I need to remind myself of the joy, the lightness, the laughter so vital to my living and my health. Otherwise, the other will always be waiting to eat me up into despair again. And that means destruction. I don’t know how, but it does.

Preciso me lembrar da alegria, da leveza, do riso tão vitais para minha vida e minha saúde. Caso contrário, o outro sempre estará esperando para me devorar até o desespero novamente. E isso significa destruição. Não sei como, mas é.

Setembro de 1979

The arrogant blindness of comfortable white women. What is this work all for? What does it matter whether I ever speak again or not? I try. The blood of black women sloshes from coast to coast and Daly says race is of no concern to women. So that means we are either immortal or born to die and no note taken, un-women.

A cegueira arrogante das confortáveis mulheres brancas. Para que serve todo esse trabalho? O que importa se eu falo novamente ou não? Eu tento. O sangue das mulheres negras se espalha de costa a costa e Daly diz que raça não interessa às mulheres. Então isso significa que ou somos imortais ou nascemos para morrer e não recebemos nenhuma nota, somos não mulheres.

3 de outubro de 1979

I don’t feel like being strong, but do I have a choice? It hurts when even my sisters look at me in the street with cold and silent eyes. I am defined as other in every group I’m a part of. The outsider, both strength and weakness. Yet without community there is certainly no liberation, no future, only the most vulnerable and temporary armistice between me and my oppression.

Não me sinto forte, mas tenho escolha? Dói quando até minhas irmãs me olham na rua com olhos frios e silenciosos. Sou definida como o outro em cada grupo do qual faço parte. O estranho, ao mesmo tempo forte e fraco. No entanto, sem comunidade certamente não há libertação, nem futuro, apenas o armistício mais vulnerável e temporário entre mim e minha opressão.

19 de novembro de 1979

I am not supposed to exist. I carry death around in my body like a condemnation. But I do live. The bee flies. There must be some way to integrate death into living, neither ignoring it nor giving in to it.

Eu não deveria existir. Eu carrego a morte em meu corpo como uma condenação. Mas eu vivo. A abelha voa. Deve haver alguma maneira de integrar a morte à vida, sem ignorá-la nem ceder a ela.

18 de fevereiro de 1980

I am 46 years living today and very pleased to be alive, very glad and very happy. Fear and pain and despair do not disappear. They only become slowly less and less important. Although sometimes I still long for a simple orderly life with a hunger sharp as that sudden vegetarian hunger for meat.

Estou com 46 anos vivendo hoje e muito feliz por estar viva, muito contente e muito feliz. O medo, a dor e o desespero não desaparecem. Eles apenas se tornam cada vez menos importantes. Embora às vezes eu ainda anseie por uma vida simples e ordeira com uma fome vegetariana aguda e súbita por carne.

20 de junho de 1980

I do not forget cancer for very long, ever. (…) I live with the constant fear of recurrence of another cancer.

Não me esqueço do câncer por muito tempo, nunca. (…) Eu convivo com o medo constante da recorrência de outro câncer.

Sobre o luxo do falso poder, Memórias do Câncer

Cada mulher responde à crise que o câncer de mama traz para sua vida com um padrão complexo, que é o desenho de quem ela é e como sua vida foi vivida. A trama de sua existência diária é o campo de treinamento para como ela lida com crises. Algumas mulheres obscurecem seus sentimentos dolorosos cercando a mastectomia com uma aura de casualidade, mantendo assim esses sentimentos para sempre encobertos, mas expressos em outro lugar. Para algumas mulheres, em um grande esforço para não serem vistas como meras vítimas, isso significa uma insistência em que não existe tal sentimento e que nada mais aconteceu. Para algumas mulheres, significa ainda o exame meticuloso por uma guerreira de outra arma, indesejada, mas útil.

(…)

Que essas palavras sirvam de encorajamento para outras mulheres falarem e agirem com base em nossas experiências com o câncer e com outras ameaças de morte, pois o silêncio nunca nos trouxe nada de valor. Acima de tudo, podem estes palavras sublinham as possibilidades de autocura e a riqueza de vida para todas as mulheres.

(…)

Escrevo muito aqui sobre o medo porque, ao moldar esta introdução para The Cancer Journals, descobri que o medo estava em minhas mãos como uma barra de aço. Quando tentei reexaminar os meses desde minha mastectomia, algumas das coisas que toquei foram desespero derretido e ondas de luto – pelo meu seio perdido, pelo tempo, pelo luxo do falso poder. Essas emoções não eram apenas difíceis e dolorosas de reviver, mas estavam entrelaçadas com o terror de que, se eu me abrisse mais uma vez para o escrutínio, para sentir a dor da perda, do desespero, de vitórias insignificantes em meus olhos para me alegrar, então eu também poderia me abrir novamente para a doença. Tive que me lembrar que já tinha passado por tudo isso. Eu conhecia a dor e sobrevivi a ela. Resta-me dar-lhe voz, partilhá-la para uso, para que a dor não seja desperdiçada.


Outro dia ouvi a história de uma mulher que tem chorado todos os dias porque está investigando um câncer de mama. Seu medo é contextualizado também pelo fato de sua própria mãe ter falecido em decorrência da doença. O histórico… E a minha primeira reação foi estúpida e desumana – Porque ela chora?

Ora, porque eu mesma não chorei depois de todos esses anos?

Porque ela deveria apenas fechar os olhos e seguir em frente, como muitas de nós fazemos?

Refleti sobre o que falei. Estava salientando a necessidade de ela correr e se cuidar. Sendo prática, objetiva, racional como dizem… Mas erradamente desconsiderando um aspecto muito importante da equação – a saúde mental das mulheres que sofrem com a ameaça de um câncer, num contexto pandêmico de uma sociedade que impõe a felicidade a todo momento.

Uma felicidade artificialesca.

E talvez seja sobre isso que fala Lorde quando escreve sobre o luxo do falso poder.

“Eu vou dar conta sozinha.”

“Eu vou ser a mesma de antes.”

“Eu vou continuar bonita.”

“Eu não preciso de ajuda e do ombro amigo das pessoas a minha volta.”

“Eu não vou ter medo de morrer.”

“Eu vou seguir trabalhando.”

Por exemplo.

Afinal, por que chorar se há uma chance estatística de 95% de cura?

A escrita de Lorde, cujas instruções de uso falam sobre encorajamento, discorrem sobre esse falso poder no qual muitas de nós nos refugiamos, com alguma razão. Como se o sentir, inclusive o medo, fosse uma fraqueza. Como se pudéssemos ter algum controle sobre o medo. Porque se eu não for forte o bastante, posso morrer.

E isso é parcialmente verdade.

Precisamos ser fortes, mas não a qualquer custo.

Não a todo momento.

A realidade das mulheres negras brasileiras em sua grande maioria não é aquela de 95% de cura. Nós ainda morremos mais. E depois de uma cirurgia, como seguir com orgânicos? Como levar uma vida livre de estresse se não dá para comprar gás? Como é que podemos assegurar a tão querida sobrevivência num país que nos quer mortas? Isso requer força.

Ou seja, não é deslocado dizer que uma mulher negra sobreviveu a um câncer.

Ao mesmo tempo que não podemos acusar quem morreu ou está sofrendo de falta de vontade, de apatia, de vontade de morrer. Porque ser uma sobrevivente, atrelada à ideia preconcebida de que somos ou deveríamos ser sempre fortes, pode inclusive ser uma barreira para que as mulheres possam admitir sem culpa que tem medo e pedir ajuda. Até mesmo para as pessoas mais próximas.

Talvez o mais corajoso diante de uma ameça de morte seja admitir que se tem medo de ficar doente e de ficar doente de novo. Seja chorar para poder se alegrar depois da cura. Para que possamos inclusive acreditar nela e encarar tudo o que vem antes, durante e depois de uma maneira digna, seja chorando ou não pelo medo de morrer.

Ai, amo igual sorvete.

Sueli Carneiro deixou o conselho editorial da Folha depois que um texto racista sobre a escravidão e mulheres negras foi publicado, escrito pelo colunista Leandro Narloch. A ativista havia chegado ao colegiado há pouco, com o intuito de torná-lo mais diverso. E o mais legal foi que Thiago Amparo, que está no novo conselho, vai levar a questão à justiça. Ai, amo igual sorvete.

Sueli Carneiro

E o tema da coluna? A defesa de que precisamos como defensoras de direitos humanos nos espelhar naquilo que Narloch chamou de sinhás pretas. Mas nem era isso que eu queria falar. Mas deixa pra lá, vamos fingir que nada disso tem a ver com essa tal da normalização do luxo em um contesto pandêmico… Fica a dicona. 💥💥💥

A fronteira final

Como capitã da USS Icatu, da Frota Estelar de Planetas, saúdo Siam Proctor como a primeira mulher negra a dirigir uma espaçonave. Porém, ela não quer ser uma porta-voz para mulheres e meninas negras mas para mulheres em geral. Pelo menos na entrevista da NatGeo. Por que bem aqui na Spaces a preta abriu o verbo.

Sian Proctor

“O maior problema que enfrento quando aponto a falta de diversidade para palestras de conferências para meus amigos caucasianos já incluídos é que eles sempre dizem, ‘Você deve dizer algo.’ O que me faz rir “, disse Proctor. “Você já está na mesa, então por que não está dizendo nada? Precisamos que os homens brancos se manifestem e denunciem qualquer falta de diversidade e / ou inclusão. Eles devem ter uma lista de pessoas de cor prontamente disponível para compartilhar quando levantarem preocupações para que sejam parte da solução.”

Amei. Tá em inglês meu bem, mas você sempre pode usar um tradutor.

Diana Vreeland, a diaba original

Diana Freeland

Agora a gente já sabe em quem Anna Wintour, que inspirou a toda poderosa de O diabo veste Prada e atual Condé Nast, pode ter se espelhado. Diana Vreeland foi a pessoa que levou as pessoas ao MET para grandes exposições de moda. Se isso não significasse tantas mortes e uma carreira descartável, adoraria ser uma editora assim. Tem alguma coisa em Wintour e Vreeland que gosto. Acho que é só tirar a parte ruim. Mesmo sabendo que isso não é possível.

Crianças

Crianças também se emocionam quando seus responsáveis gozam de boa saúde mental. E tem um jeitinho todo especial de dizer isso. Eu mesma fui chamada de bruxa ontem <333 As pessoas não estão falando sobre isso mas deveriam.

Charles Garnier

E pra terminar, quero te indicar um documentário sobre Charles Garnier e arquitetura da ópera que leva seu nome e inspirou teatros mundo afora, como o Municipal de São Paulo. Uma obra fundamental para entendermos a colonialidade e o século XIX. E porque ainda não saimos da Idade Média. Está passando no canal Curta! mas também tem no youtube com tradução disponível.

A parte em que se fala das bailarinas por exemplo é ororível. Um ótimo retrato da cisheteronormatividade européia da época. E de hoje.